Um lugar sem crise (IV)

Histórias de vidas que se repetem…

Ilustração: EMBrito

— Onde é que nós paramos mesmo?

— O que acontece com as briguentas agora?

— Nada mais sério… o cliente sempre tem razão, não é mesmo? A nova “conquista” fica com ele e a “velha” ganha um dia de folga para ver a família ou ir ao cinema ou ir às compras ou qualquer coisa que ela queira… longe daqui por 24 horas! Onde é, mesmo, que nós paramos?

— Você falava de aposentadoria… Que, concordo com você, não é uma coisa muito fácil de encarar. Eu me aposentei há 15 anos, depois de trabalhar uns 40 ininterruptamente. Só parei de sentir falta do trabalho diário e recuperei o equilíbrio quando me mudei aqui para o meio do mato. Com o reequilíbrio, veio a vontade de fazer alguma coisa útil, o que consegui de uns dois anos para cá, quando minha caçula criou meu blog e recuperei minha vontade de escrever.

— Daí, seu desejo de conversar comigo…

— Para falar a verdade, Dezinha, teve uma época da minha vida em que eu conversei muito com “p….” e gerentes de “p………” Há muitos e muitos anos atrás… E isto ficou guardado nalgum escaninho da minha mente. Nosso amigo comum me convenceu a vir aqui exatamente por isto: quem sabe, a sua história de vida se some às tantas histórias de vida que eu já ouvi há muitos e muitos anos atrás e me leve a escrever algo que realize meu sonho de ser escritor? Certamente, não se tornará uma novela da Globo, mas poderei morrer realizado…

— Eu tinha 12 anos quando fui deflorada por um tio, irmão de minha mãe. Meu pai tinha um pequeno sítio no sul da Bahia, na divisa com Minas, onde plantava feijão . Eu era a quarta filha de doze filhos. Minhas duas irmãs mais velhas também tinham sido defloradas pelo mesmo tio, mas deram sorte, não ficaram prenhas… Eu dei azar! E a culpa, claro!, tinha que ser  minha! Antes que meu pai soubesse, minha mãe arrumou uma benzedeira da região que me fez engolir uns xaropes e eu abortei. Mas avisou meu pai que eu precisava casar logo, porque tinha muito fogo embaixo.

— 12 anos?

— Não tinha nem peitos direito! Mas meu pai era temente a Deus e achava que fogo lá embaixo era sinal do diabo… Arranjou um sitiante como ele, que tinha perdido a mulher no quarto parto – ela e a criança tinham morrido – e tratou o casamento. Marcião, o viúvo, achou que o negócio era para minha irmã quatro anos mais velha que eu, “mulher feita já”, e refugou quando descobriu que era eu, com 12 anos. Daí, meu pai mostrou que era eu que cuidava das crianças menores, como os três filhos dele, e acabou aceitando. Casamos na igrejinha do povoado, quando o padre de Cocos veio rezar missa na região, o que acontecia uma vez por mês, acho. Ele não disse nada – devia estar acostumado àquelas aberrações: um cara de uns 30 anos, com três filhos pequenos, casando com uma menina de 12!

— Isto sempre foi comum no interiorzão… Os padres, geralmente estrangeiros, estavam ali para seguir regras rígidas da Igreja. A Teologia da Libertação veio depois, tentando mudar isto, mas foi sufocada pela própria Igreja…

— O mais estranho é que uns dez anos depois, em Montes Claros, já fugida de casa, eu reencontrei este padre… e ele me ajudou muito, inclusive a me livrar de algumas culpas…! Imagina! Uma p……* de 22 anos com complexo de culpa por ter abandonado o marido e três filhos que não eram dela…!

— Fugida de casa?

— É… Marcião não era um homem mau. Era como todos os homens daquela região, bronco, de poucas palavras, com uma visão de mundo bem definida: passava o dia inteiro na lida para se sustentar e sustentar a família. À mulher cabia cuidar dos filhos, cuidar da casa, fazer comida e ser comida, para fazer mais filhos… E, por alguma razão, ‘psico’ ou biológica, eu não engravidava, ao contrário da primeira vez. E a culpa tinha que ser minha, claro!, porque os meninos dele eram provas vivas de que ele era macho pra valer!

— Ele não sabia que você abortara?

— Se soubesse antes, não teria casado, não é? E se soubesse depois, me mandaria de volta pro pai!

O celular tocou  e ela teve que sair de novo. Desta vez, não a vi saindo para a piscina. Mas vi um casal conhecido, ele um economista requisitado pelos programas televisivos e ela uma figura tradicional da sociedade paulista, assumindo uma mesa já preparada por um garçom que os acompanhava. Pouco depois, o mesmo garçom trouxe outro casal para a mesma mesa. Imaginei que se tratasse das preliminares do famoso suingue e fiquei observando, curioso. Mas Dezinha voltou antes que houvesse alguma consequência interessante: eles continuavam sentados, bebendo e conversando.

— Mais problemas?

— Normal! O ser humano é muito previsível… Num lugar como este, ele libera todos os seus instintos e você tem que intervir às vezes, porque há regras de convivência que precisam ser entendidas e respeitadas… para não prejudicar o negócio! (continua)

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