Anotações de um velho à procura de vida (V)

5. Vida versus vida

Nós só fomos descobrir a “rodoviária” do ônibus para Washington no dia de ir embora: por sugestão da Fernanda, Lara havia comprado as passagens pelo celular, conseguiu chamar um Uber também pelo celular e o uber driver nos levou a uns nove quarteirões do hotel, na tal out Penn Station, uma rua comum onde um ponto de ônibus comum indicava o nome da empresa (Vamose), isto é: não havia rodoviária para algumas empresas interestaduais… elas paravam nas ruas mesmo, economizando taxas, impostos e que tais e barateando a passagem, claro (viva o capitalismo!)

Na realidade, o ônibus não era pra Washington, mas pra Arlington, na Virgínia, uma das muitas cidades satélites do Distrito de Colúmbia, onde fica Washington, e onde minhas filhas moram (uma espécie de Valparaíso de Goiás em relação à Brasília, só que com metrô). Diferente das rodovias brasileiras, fora o trecho de saída de Nova Iorque, você não cruza cidades ou passa por periferias no caminho:  os 370 km até o destino são percorridos em 04 horas, sem paradas pra cafezinho ou ida ao banheiro na highway de 04 pistas de cada lado.

No nosso caso, houve 03 paradas: uma pro motorista urinar no banheiro do ônibus, outra pra ele entregar uma encomenda pra algum parente e a terceira o ponto semifinal, outra cidade satélite, Bethesda, onde a maioria dos passageiros desembarcou. Mais um pouco e chegamos em Rossiter, bairro de Arlington, final da viagem, um ponto de ônibus em frente ao Restaurante Cosi, onde as meninas foram nos buscar.

Minhas filhas moram num bairro típico daqueles condados americanos que a gente tanto vê em seus filmes, uma a 10 minutos a pé da casa da outra: são casas de dois andares, mais sótão ou porão ou os dois, cercadas de pequenos jardins, sem muros ou grades. Os carros – e até a moto do Joey, meu genro – dormem na rua, sem qualquer risco. A tranquilidade é tanta que mesmo encomendas via Internet são deixadas nas varandas, quando não há ninguém em casa.

Pra meu imenso orgulho, mesmo não professando minhas ideias socialistas, minhas filhas trabalham, hoje, com assistência social. Aline, a mais velha, que é sócia do marido numa empresa de tecnologia,  é contratada da prefeitura do Condado de Arlington, num setor de apoio aos funcionários municipais; já Fernanda trabalha numa empresa contratada pelo governo para assistir pessoas com traumas psicológicos, seja um garoto que apanhou muito do pai, seja um velho que, após um AVC, tenta se readaptar à vida. No momento, atende 21 traumatizados.

A gente ficou na casa de Aline, no quarto do neto mais velho. Eu tinha acertado com ela, antes de viajar, que não queria atrapalhar a rotina da casa, mas a rotina da casa já estava atrapalhada pela expansão do coronavírus. As aulas tinham sido suspensas, os funcionários públicos ou privados não essenciais e os empresários já estavam trabalhando em casa. Isto foi bom: pude curtir filhas e netos durante algum tempo, vez que os 12 dias que pretendia ficar com eles teve que ser reduzido: com o agravamento mundial da epidemia, corríamos o risco de não voltarmos pra casa e a decisão, logo que chegamos em Arlington, foi comprar passagens de volta, encurtando Washington e esquecendo Cuba.

Reencontrei filhas e netos no sábado e nos despedimos na terça, infelizmente. O  tempo foi pouco, óbvio, mas me encheu da vida que estava me faltando. Os passeios de manhãzinha com Aline e a cachorra Lilly pelas ruas quase vazias de Arlington (socialização apenas de Lilly e um ou outro cachorro da vizinhança, também passeando), a família reunida no jantar, as conversas com todos, o jogo de cartas Dorminhoco numa noite, a casa de minha primeira mulher, com suas frutas plantadas e sua horta começada, o passeio guiado pelos netos pelo Mall – a esplanada de Washington, entre o Capitólio e o Lincoln Center, me mostraram que a vida que eu procurava não está numa aglomeração  efervescente de gente, a capital do mundo, mas dentro de mim, através das filhas e netos que construíram e constroem suas vidas com confiança, com amor, com alegria e muita paz.

O passeio pelo Mall, que eu conhecera da primeira vez que estive aqui, foi uma lição de vitalidade dos netos, três jovens a correr pelos espaços quase desertos, a mostrar prédios e pular barreiras, a me ensinar algumas curiosidades, como a diferença de cores no “pirulito”, o Monumento a Washington, coisa que só percebi quando estávamos embaixo dele (ele começou a ser construído antes da II Guerra, foi interrompido a certa altura por causa da guerra e, quando retomada a construção, não existia mais o material usado até então).

Quando estive aqui em 2002, havia uma homenagem qualquer aos soldados mortos no Vietnam. O local estava tomado de gente e de ex combatentes, a maioria imensa com suas longas barbas e cabelos brancos e roupas de soldado, circulando em potentes e vistosas Harley Davidson. Quiosques montados sobre kombis e camionetes (ainda não havia food trucks) se contavam aos montes… desta vez, nada! E como tudo estava fechado, só conseguimos ver os monumentos aos mortos do Vietnam e aos mortos da II Guerra Mundial (este construído depois que vim aqui), e o Lincoln Center, a imensa estátua de Lincoln a vigiar os Estados Unidos.

Às 06 horas da manhã, Arlington ainda escura, estávamos tomando café com Aline e Fernanda, que ia nos levar pro aeroporto. Os meninos mais novos conseguiram acordar e vieram se despedir. E o velho aqui, um tanto emocionado, cometeu sua última vacilada: derrubou o café na própria calça e quebrou um belo copo da casa. Não dava tempo de trocar. Como eu já disse, mineiro não perde trem, inda mais trem que voa! (termina amanhã)

 

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