As meninas que amavam rosa (I)

Eu vi Rosaura pela primeira vez numa festa de Natal promovida pela associação patronal da região onde moro, aliás a última festa comunitária promovida por ela – os associados não gostaram muito daquele monte de trabalhadores e respectivas famílias se misturando às suas próprias famílias e brecaram novas confraternizações. Quem paga manda, não é mesmo?

Rosaura tinha uns 14 anos mas, magrinha, rostinho meio encovado, pele um pouco manchada, parecia bem mais nova. E, mesmo assim, chamava atenção! Os cabelos muito pretos, soltos, e os olhos de um azul profundo faziam um contraste fantástico (ou chocavam, seria mais adequado?) com o vestidinho rosa quase choque. Era a roupa de gala que ela pedira pra mãe comprar, para ela receber um prêmio pela melhor redação da escola.

Olga, a mãe, uma paranaense recém chegada à região, mas já empregada como caseira de uma chácara de conterrâneos seus, contava, com orgulho, a todos que paravam à sua mesa, que a professora dera como exercício na aula de Português, para as crianças escreverem uma redação dizendo o que queriam ganhar de presente de Natal (as crianças já eram grandinhas pra se falar em Papai Noel), e explicando porque. Rosaura escreveu só duas frases: “Eu quero um novo pai!. Porque eu sinto falta do meu!” Ganhou o prêmio, que seria entregue naquela festa de  confraternização.

Nela, os patrões  de Olga me contaram que ela era viúva de um sitiante em Guarapuava, cuidando ela mesma do sítio, pois o marido vivia pelas estradas movimentando pequenos agricultores que ainda não tinham um pedaço de terra pra plantar e viver. Ligado ao Movimento dos Sem Terra, ele era avisado pelas lideranças sobre áreas improdutivas e/ou abandonadas e providenciava a invasão e instalação de um acampamento. Numa destas invasões, levou três tiros de capangas de um fazendeiro e morreu. Ameaçada de expulsão ou morte, ela e Rosaura vieram pra Brasília, com recomendações de parentes e, em pouco tempo, ela se tornou a eficiente caseira deles.

Uns dois anos depois revi Rosaura numa festa junina da igreja. Além do cabelo negro e dos olhos de um azul profundo constrastando com o short rosa, havia algo mais a chamar a atenção: o corpo de mulher. E Rosaura tinha absoluta consciência disto, não só pelo jeito provocante de se vestir, mas pelo olhar meio zombereiro que lançava para o monte de rapazes e homens feitos que ficavam à sua volta, cada um querendo se mostrar mais, aparecer mais, ansiando por um sorriso da diva.

E continuava boa aluna, brilhante mesmo, como me afirmou o Professor André, numa reunião periódica entre associação, escola e igrejas para a qual eu fui convidado. Estas reuniões foram propostas e eram coordenadas pelo professor  para acompanhar o processo de integração escola/comunidade, um sonho dele, que ele começara a por em prática assim que fora eleito diretor da escola.

Eu entrei no projeto porque uma das ações pensadas pelo grupo era criar um jornal da comunidade, colocando os bons alunos com jeito e disposição para a coisa para bancarem repórteres e redatores dos fatos e eventos acontecidos no dia a dia da comunidade. Como eu fora um jornalista e editor durante anos, me caberia a responsabilidade de analisar os trabalhos em aula de alguns alunos, conversar com eles e escolher os primeiros ‘repórteres’ do futuro jornal. Rosaura foi a primeira escolhida. Não só pela correção e criatividade de suas redações, como pela facilidade que tinha pra conversar com qualquer pessoa, o que é uma qualidade essencial para um bom repórter. Além do que, ela estava convicta: “Vou ser jornalista!”

Em nossas conversas, uma única coisa me incomodava: sua fixação na cor rosa. Quando perguntei porque sempre tinha alguma coisa rosa nela – a saia, a blusa, a sandália ou uma fita ou o baton ou, até mesmo, uma rosa rosa nos cabelos, ela foi simples e direta: — É que eu adoro rosa… a flor! Todas as vezes que meu pai saia pras lutas dele, sentava comigo num roseiral que a gente tinha no sítio, e repetia que eu tinha nascido com uma áurea rósea sobre a cabeça, por isso me dera o nome de Rosaura.E sempre que ia embora, ele arrancava uma rosa, me mandava dar uma cheirada e dizia que o perfume ficaria comigo até ele voltar. Sempre cumpriu a promessa, até o dia que não voltou mais!

Muitas das ações do projeto foram implementadas, como o 2° tempo – os alunos do turno da manhã, por exemplo, tinham outras atividades no turno da tarde, e vice versa, normalmente realizadas nas dependências da associação, mas o jornal da comunidade, infelizmente, não teve tempo de ser implantado. Para decepção e angústia de Rosaura, que insistiu para que ele saísse do papel, mas não teve apoio da escola. (termina quinta)

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