Um rolé por Pindorama (V)

– Acho que já vi este filme, tio Pedro…

– Imitação barata  do incêndio do Reichstag, talvez, Senhor…?

– Não! Naquele lá, os nazistas arrumaram um ‘laranja’. Aqui já tem laranja demais! Estou falando da floresta amazônica. Ruralistas, mineradores e madeireiros amigos foram incentivados a aproveitar o período das secas e potencializaram as queimadas, enquanto governante e governo acusavam ONG’s, índios, chavistas e cubanos…

Aterrisando na rodoviária, Jesus percebeu que na Esplanada, pelo menos na Esplanada, não haveria guerra. Ela estava tomada de uniformes verdes, azuis e brancos, com Urutus apontando seus canhões para as duas bacias, os ministérios e o Supremo Tribunal Federal. Para ficar bem claro que lado que o lado negro da Força estava, três Urutus postaram-se à frente do Palácio do Planalto… com os canhões voltados para o STF. Jesus levantou as mãos e São Pedro sussurrou:

– Bahia… Raso da Catarina ou Salvador, mulatas, trio elétrico, Tropicália, Abaeté… ou Rio, mulatas, escolas de samba, Bossa Nova, Copacabana, princesinha do mar…

– Eu acho que vou voltar… Não tem muito o que fazer aqui não, tio Pedro. Com a fixação do Pai pelo livre arbítrio, eu não vou poder interferir. E não há esperança! Este povo viveu tempos sombrios, muito sombrios, há 50 anos apenas! E entrega seu país, sua terra, seu futuro, prum homem que diz que é favorável à tortura? Logo o maior país católico do mundo, que ora e chora todo domingo nas minhas igrejas por eu ter morrido torturado numa cruz?

-Me permita dizer, Senhor, que o Senhor viu apenas o lado podre da maçã! Que tal conhecer o lado são, aquele pedaço que Eva não chegou a morder?

– Honestamente, não acredito nisto, tio Pedro, mas não estou fazendo nada mesmo… E Madalena está me esperando apenas pra semana que vem. Pra onde queres me levar… e pra ver o que?

— Mais dois lugares apenas.

E Jesus foi parar no meio de um fogaréu amazônico! Ficou olhando um bando de índios e caboclos, corpos quase nus e brilhando de suor, fazendo uma espécie de cordão de isolamento e usando abafadores e galhos de árvores e  tentando empurrar o fogo para um lugar à frente. Alguém bateu no seu ombro e zangou:

– Cacatéta ficou cansadinho, heim? – Jesus olhou pra trás e deu de cara com um índio velho de cabelo branco com a cara do Pato Donald – seu imenso beiço inferior parecia um bico de pato. Antes que começasse a rir, São Pedro sussurrou: Cuidado, Senhor, este aí é o grande guerreiro e grande chefe dos caiapós, figura aplaudida em todo o mundo civilizado pela sua luta pela preservação da Amazônia e dos povos indígenas.

Virou-se para ele rapidamente e, baixando um pouco a cabeça em sinal de respeito, apresentou-se:

– Jesus Cristo, ao seu inteiro dispor. É uma honra conhecer o Grande Raoni Metuktire, defensor das florestas…

– Tupã, tenha piedade deste velho… Mais um louco que acha que pode apagar queimada apenas com a força de sua fé! Olha aqui, caboclo, ou você pega um abafador e se junta à indiaiada ali na frente ou sai daqui e vai bancar o salvador da pátria lá no Planalto Central… Lá é que é lugar de idiota! Deu as costas a Jesus e foi se juntar a outro grupo de índios que se preparava pra substituir os que estavam em frente ao fogaréu.

Jesus levantou as mãos e perguntou:

– Tio Pedro, será que eu posso dar uma sopradinha e apagar o incêndio? Uma sopradinha só… São Pedro não falou nada e ele deu a sopradinha. O fogo se apagou quase instantaneamente, apesar de algumas fagulhas se desprenderem e serem empurradas pela ventania… mas sem riscos porque à frente havia um rio caudaloso.

– Vamos embora logo, tio… antes que o Grande Raoni venha aqui me pedir perdão por me chamar de louco. E enquanto me leva pra outro lugar, me explica porque me trouxe aqui… só pra conhecer o Raoni? Quer me fazer crer que um velho que já cumpriu sua missão na Terra representa a esperança deste povo?

– Não, meu Senhor, o importante aí é o povo, que se arrisca, sem roupa anti-fogo, capacete, botas, mangueira esguichando água… para salvar a floresta, enquanto os poderosos lá de Brasília ficam jogando a culpa das queimadas em índios e ONG’s e só depois que os incêndios criminosos deixam terras arrasadas, próprias pra pastagem e soja, é que mandam as Forças Armadas para fingir que estão fazendo alguma coisa… provavelmente para ajudar ruralistas, mineradoras e madeireiras a ocuparem o pedaço…

-Tio Pedro, tio Pedro… Nosso Pai não gosta de revolucionários bagunçando o livre arbítrio dele. Lembre-se do que aconteceu comigo!

E Jesus aterrissou numa praia, uma linda enseada de areias que deveriam ser brancas, mas estavam imundas, sarapintadas de preto em toda a sua extensão, aqui a ali cobertas de grandes manchas também pretas. Apenas onde Jesus caiu, a praia estava limpa, recém limpa porque um espécie de muro humano caminhava lentamente, de costas para Jesus, empurrando e formando pequenos montes que eram coletados por outros grupos com pás e jogados em caçambas. Havia homens e mulheres, velhos e jovens e crianças, brancos, pretos, louros, mulatos… trabalhando duro, mas rindo, cantando, brincando uns com os outros… e nenhuma autoridade! (deviam estar todas vendo o circo pegar fogo em Brasília!)

– Não há muito que eu possa fazer por aqui, tio Pedro. Se eu soprar a praia, a areia cobre e sufoca o povo… se eu soprar o mar, a África vai ser inundada. Mas, compreendi o recado: com toda a sua alienação política, o povo faz a sua parte e briga, solidário, pela sobrevivência com unhas e dentes, sempre com esperança de dias melhores por vir. Preciso pensar numa forma de garantir isto!

Uma nuvem escura apareceu no céu ensolarado, um estrondo se ouviu assustando o povo na praia, e dois raios faiscaram no final do oceano:

– Está na hora de voltar, meu filho! Sua mãe está com saudade…

– Mas, Pai… Eu preciso fazer alguma coisa!

– Está bem, meu filho. Beije o chão que você pisa… Quem sabe, transforme a esperança em realidade e este povo sofrido encontre sua inalcançável estrela.

Jesus assim fez e partiu com São Pesro.

(Fim. Ou não… Afinal, Jesus é rebelde!)

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