Médicos?

 

Depois de alguns anos rodando pelo Brasil como sanitarista, sendo  médico e diretor de colônias de lepra (eu nasci em uma, em Minas), meu pai voltou para a terra natal, para ser o médico da cidade e do hospital de lá. Eu tinha de 03 para 04 anos e, confesso, era muito medroso. Enquanto meu irmão mais velho, com 07 para 08 anos, e sua turma de crianças bem nascidas, zoneava pelas ruas da cidade, eu ficava horas no quintal de casa, construindo estradas de terra e cinza e rodando mundo afora em caminhõezinhos de madeira… E tinha pesadelos à noite, com medo de sombras, escorpiões, entes fantasmagóricos e que tais…

Daí, muitas vezes, eu acordava de madrugada sufocado, pedindo socorro a um pai que nunca estava presente. Ele era médico! Ou estava fazendo um parto difícil numa fazenda a 20 km de estrada de terra da cidade, ou estava ferrado no sono depois de passar a madrugada amputando a perna de um peão, destroçada por um touro enraivecido…

Estou relembrando este ‘trauma infantil’ agora, tantos anos depois, depois de passar por duas experiências tão marcantes quanto. Minha mãe, quase centenária e portadora de um câncer pulmonar, detectado há 03 anos, escorregou e teve uma fratura transtrocanteriana (decorei o nome… viva eu!).

Um amigo ortopedista aposentado que veio vê-la logo depois da queda, presumiu a fratura e achou melhor ela fazer um Raio X e confirmar ou não a presunção. Liguei para um hospital atendido pelo Plano de Saúde dela e, confirmando a possibilidade de realização do Raio X, liguei para o serviço de ambulância também atendido pelo Plano. Tudo acertado, uma hora depois a ambulância chegou em casa. Como se tratava de fratura, a maca de transporte era de madeira, o que incomodou profundamente minha mãe, que ‘viajou’ quase uma hora xingando o transporte. E, no meio do caminho, a empresa de ambulância me ligou dizendo que o hospital que eu havia contatado estava muito cheio, sugerindo levá-la para um outro, recém-inaugurado, que tinha maior disponibilidade para atendê-la com urgência. Concordei.

Era sexta-feira e o hospital fora inaugurado na segunda. E, realmente, a disponibilidade era total: não havia um único paciente no pronto-socorro, na recepção, em qualquer sala ou em qualquer quarto! Apenas um bom número de médicos jovens, enfermeiras e assistentes, que tudo fizeram para agradar minha mãe, uma anciã que, apesar das dores na coxa, adorou se ver cercada de jovens carinhosos. Bateu-se um pouco de cabeça para se chegar ao nosso objetivo, tirar um Raio X, mas ele foi alcançado.

Demorou um pouco mais que o necessário, é verdade, mas por razões técnicas: o Raio X fica no subsolo e, depois que minha mãe foi levada para lá pelo elevador, este quebrou… Foi preciso chamar um mecânico para consertá-lo. Durante outra hora, minha mãe ficou por lá – já medicada e sem dores – contando histórias de sua vida, ao lado de meu pai, pelo interior do país. No fundo, para a paciente, a experiência foi interessante… mas para quem a acompanhava foi um tormento!

Constatada a fratura, mas considerando a idade e a baixa imunidade provocada pelo câncer, a operação, mais indicada, seria um risco muito grande para ela e, por isso, ela, que continua lúcida, e nós, a família, optamos por não fazê-la.

Daí, o ortopedista pediu que a gente fizesse novo Raio X após um mês de cama, sem a paciente encostar o pé no chão e tomando Tilex até 04 vezes por dia, para reduzir as dores. Esta semana atendemos. A logística não é muito fácil: a gente tem que achar a disponibilidade radiológica do hospital… tem que verificar se o mesmo ortopedista estará atendendo naquele dia, de modo a encaixar a chamada da ambulância, já que, pela imobilidade, minha mãe não pode ir no meu carro.

Durante uns três dias, tentei falar com o hospital para checar o dia em que o ortopedista estaria atendendo… O hospital é novo, foi inaugurado há um mês, como eu disse…  minha mãe foi a segunda paciente internada no mês passado… – e ainda está se estruturando… o que não justifica que, administrativamente, seja um desastre: a gente não consegue falar com o hospital via telefone! Acabei conseguindo fazê-lo através do mesmo serviço de ambulância que eu usara o mês passado (aí descobri que ele tinha um convênio com o novo hospital… e, por isso, me encaminhara para lá!)

Em assim sendo, no primeiro retorno ao mesmo hospital, eu não consegui encaixar todas as premissas: o hospital era o mesmo, o Raio X era o mesmo, mas o médico era outro….. eram outros, aliás! O primeiro nos atendeu ao darmos entrada no Pronto Socorro. Concordou que era necessário fazer um Raio X e prescreveu os medicamentos necessários enquanto ela permanecesse no hospital.

E foi aí que eu me lembrei de minha infância e de meu pai médico: estava no consultório conversando com o primeiro médico sobre a situação de minha mãe, quando ele olhou o relógio e me disse que faltavam 07 minutos para terminar seu  horário de atendimento, ou seja: tomados os medicamentos e feito o Raio X, eu deveria repassar tudo que eu havia dito a ele ao seu substituto, que avaliaria a situação e, certamente, diria o que fazer então.

Nas mensagens que troco com alguns jovens que frequentam os mesmos grupos e redes sociais que eu, eles costumam dizer que meu modo de vida está ultrapassado, que o  objetivo de vida, hoje, é se dar bem… e se dar bem significa ter dinheiro, usufruir o que a vida tem de melhor… ser você mesmo e, como tal, se você está bem, os demais que vão para a p..* que os pariu! ‘Cada um cuida de si, carái…’, como me disse um garoto de 15 anos outro dia…

Pensava nisto outra madrugada, deitado no quarto de minha mãe, enquanto o relógio de parede tiquetaqueava… Ela acordou assustada, jogando as cobertas de lado e tentando arrancar a fralda: estava se sentindo imunda e queria tomar um banho. Acordei minha filha caçula e fomos limpá-la, dar-lhe um banho de leito e trocá-la. Com ela limpa, confortável e recoberta, minha filha foi tentar dormir e eu fiquei sentado ao lado da cama de minha mãe, para ver se ela dormia. Ela segurou minha mão, apertou-a e sorriu:

— Sua filha tem jeito para médica… Ainda bem que fez Arquitetura!

— Como assim, mãe?

— Você se lembra de seu aniversário de 04 anos?

É uma das poucas lembranças que eu tenho da infância: minha mãe fez um bolo com uma cara de palhaço cercada de cascas de nozes com se fossem tartarugas, para encanto e surpresa meus e dos amiguinhos, primos, primas e tias presentes. Só meu pai não estava: tinha ido atender um chamado, parto de gêmeos, em Estação Dias, um distrito da cidade. De madrugada, eu acordei aos gritos, vendo um palhaço imenso na parede querendo comer pedaços de mim… Estava ardendo de febre! Minha mãe me socorreu, abaixou a febre e tirou meu medo. Sem conseguir dormir, eu perguntei:

— Por que papai não estava no meu aniversário? Ela passou a mão na minha cabeça e disse: eu estou aqui, não estou?

Passados 67 anos, ela respondeu:

— Quando seu pai chegou, eu contei o que havia acontecido e perguntei o que eu devia ter dito para você. Ele foi ao seu quarto, examinou-o, você estava sem febre, nem se mexeu. Ele segurou minha mão e  me levou até o consultório que tinha lá em casa e apontou para o diploma dele e o Juramento de Hipócrates, que estavam emoldurados na parede que ficava atrás da mesa:

— Quando me formei, eu fiz um juramento. No dia que eu não cumpri-lo, eu deixo de ser médico!

Será que os médicos de hoje continuam fazendo o mesmo juramento? Provavelmente, sim. Só que a medicina pública, assim como a educação pública, está sendo substituída pela privada, nos dois sentidos…l

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