Mulheres… apenas!

“Esta menina é sapeca!”

Cansei de ouvir esta sentença entre os meus 11 e 13 anos. Virava e mexia, alguma das amigas ou vizinhas de minha mãe dizia isto em conversas entre elas, sempre seguido de um ligeiro ar ou um franzido olhar de reprovação.

Naqueles tempos, sem Internet, Google e que tais, toda vez que eu ouvia uma palavra desconhecida ou que eu queria saber qual seria seu real significado, eu consultava o ‘pai dos burros’, o famoso dicionário Caldas Aulete de meu pai, em 05 volumes, que ainda hoje ilustra minha biblioteca, já bem pouco manuseado há muitos anos. Eu sabia que sapeca era qualquer criança endiabrada, que fazia arte, mas o dicionário me ensinou que sapeca era ‘a moça vadia ou muito namoradeira e desenvolta’, o que explicava a reprovação. E sapeca, para as donas de casa do edifício Mantiqueira, era a Miriam, a menina do 10° andar.

Miriam era judia. Os pais haviam fugido da fome na Europa pós-guerra, com ela recém-nascida, aportando em Santos e indo morar em Juiz de Fora. Com as ramificações religiosas, mudaram-se para o Mantiqueira em 1959, praticamente o único prédio residencial que tinha na região, a um quarteirão da Praça 7, centro geométrico de Belo Horizonte então, cruzamento das avenidas Amazonas com Afonso Pena.

O Mantiqueira era uma babel: além de mineiros do Sul, da Zona da Mata e do Triângulo, de cariocas, paulistas, pernambucanos e gaúchos, tinha famílias judias, árabes, sírio-libanesas e até um norte americano, Dr. Caramuru, representante de uma empresa ianque, que costumava jogar xadrez com meu pai.

Nossa turma ainda era pequena, só os meninos do prédio e de algumas casas que ainda existiam nas ruas  Espírito Santo, Bahia e da própria Tupinambás. E não havia meninas. Todas as que moravam no Mantiqueira já eram mocinhas, 15, 16 anos, inclusive a nossa musa, Lívia, irmã do Paulinho Totoso (se o apelido dele era este, imaginem a irmã!), uma morena de cintura fina, seios e glúteos arrebatadores, sonho unânime de nossas noites mal dormidas. E, evidentemente, todas elas passavam por nós olhando por cima, como se não existíssemos.

Miriam era diferente. Apesar de um ou dois anos mais nova que as outras, ela gostava das brincadeiras dos meninos na rua, pega bandeira, pique-esconde, queimada… E gostava de conversar e correr comigo nas e pelas escadas do prédio, em especial, certamente porque eu era tímido e ela se deliciava com isto – as iniciativas eram sempre dela – e porque ela morava no 10° andar, no apartamento exatamente acima do meu. Ou seja: ela adorava descer e subir escadas, e sempre que fazia isto, costumava baixar um cordão com um saquinho com brita na ponta, que ficava balançando e batendo na janela do meu quarto até eu dar sinal que tinha visto e estava pronto para encontra-la na escada.

Eu gostava deste joguinho infanto-juvenil onde o máximo que rolava eram abraços apertados, beijinhos labiais, mãos roçando as partes pudendas por cima das roupas…  Mas que me davam uma estúpida sensação de poder sobre os amigos da rua, uma sensação que era só minha, porque eu nunca as compartilhei com nenhum deles, nem mesmo com Antônio Carlos ou Ricardo, que eram meus irmãos de fé nestes tempos.

Num destes encontros nas escadas, eu criei coragem e disse para ela: ‘Miroca, você sabe que as mulheres do prédio vivem dizendo que você é sapeca? Sabe o que é isto?’ E ela, sem pestanejar: ‘Não sei e nem quero saber… Não me interessa o que os outros pensam de mim! Importante é quem eu sou, como e o que eu sinto e quero!’

Em 1961, o pai de Miriam foi contratado por uma firma de Uberlândia e ela se mudou para lá. Nunca mais soube qualquer coisa dela. Mas, ficaram estas boas lembranças e uma certeza: minhas desconfianças da integridade moral, dos predicados cristãos e da infalibilidade das regras sociais da classe média brasileira nasceram ali, da minha crença em que uma jovem ‘sapeca’ se mostrava mais verdadeira ao agir como ela achava que devia agir, do que um punhado de mulheres razoavelmente bem postas na vida, que achavam que o modo correto de agir era obedecer aquilo que a sociedade determinava, mesmo que não fosse o gosto delas, mesmo que não fossem felizes… Aliás, muitas destas amigas e vizinhas da minha mãe, obedecendo  os maridos e os ditames da igreja conservadora, participaram daquelas históricas marchas “da família com Deus pela liberdade”, que deram o mote para a ditadura de 1964 a 1985.

A palavra sapeca deixou de ser usada nos tempos que hoje correm. Os costumes mudaram e, felizmente, milhões de mulheres não aceitam mais serem controladas por normas sociais machistas e castradoras, que as tornam meros instrumentos de prazer dos homens ou rainhas do lar, com a sagrada incumbência de cuidar dos filhos e do bem estar dos maridos.

Infelizmente, porém, no Brasil de hoje ainda existem milhões de mulheres que não descobriram a felicidade de ser e viver como pessoas livres, donas de seus pensamentos, donas de suas vontades, donas de seus corpos, donas de suas vidas. Elas gostam de se mostrar dependentes, preferem se mostrar protegidas, porque isto não as transforma em sapecas para a sociedade… Isto ficou patente nas redes sociais neste recente período eleitoral que acabamos de passar.

Fiquei impressionado com a quantidade de mulheres se manifestando no Facebook ou no Whats’App, divulgando seu apoio político para um lado ou outro… mas fiquei desesperançado  com o volume de opiniões femininas que se apegavam a dogmas religiosos, a interpretações bíblicas de pastores, a regras pré-históricas impostas pelos homens, para declararem seus votos em um político que diz que não é político e passou quase 30 anos no Congresso defendendo a inferioridade e consequente subordinação  da mulher ao homem, a tortura como meio de extrair qualquer coisa de um ser humano, a predominância absoluta da maioria – no caso branca, cristã e bem posta na vida – sobre todas e quaisquer minorias.

Teve uma, por exemplo, que pouco antes do 2° turno postou esta declaração de fé: “Nosso Deus Pai criou o homem primeiro e a mulher a partir de uma costela do homem. Ele indicou com isto a superioridade dos homens sobre as mulheres… Nosso Messias está chegando exatamente para repor o desejo de Deus sobre os brasileiros!”

E teve outra, mais recente, que postou: “Nosso presidente sabe o que faz! Nenhuma família pode viver sem seu homem em casa… Ele está mandando os médicos de volta para Cuba porque suas mulheres não podem cuidar sozinhas de suas famílias!”

A melhor para mim, no entanto, continua sendo da Rosa Morena, frequentadora assídua de um grupo de What’App que eu também participo. Postou ela: “Bolsonaro não é ditador, gente. É apenas homem, honesto e crente em Deus e, por isto, assusta. Viado vai continuar viado, ladrão vai continuar ladrão, travesti vai continuar travesti, maconheiro vai continuar maconheiro, sapata vai continuar sapata,  jornalista vai continuar mentindo, político vai continuar roubando… e eu vou continuar fazendo comida e cafuné pro meu maridinho, graças a Deus!”

Enfim, o caminho para a plenitude será longo, com muitos retrocessos como o que vai acontecer nos próximos meses com este Brasil, mais uma vez varonil. Mas o tempo continua sendo dono da razão. O voto foi introduzido no Brasil em 1532, com a eleição dos membros do Conselho Municipal da Vila de São Vicente, em São Paulo. Mas as mulheres brasileiras só tiveram direito de voto e de serem votadas em 1932, em plena Era Vargas, e ,assim mesmo, este direito só era dado às mulheres casadas, com a devida permissão do marido. Depois de 400 anos, elas quase se equipararam aos homens neste quesito, que exerceram, cada vez com mais valentia e personalidade nos últimos 86 anos. Já no quesito viver,  são milhares de anos de submissão… Atenas fica logo ali…!

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