In memoriam

Eu não sou um homem muito viajado, internacionalmente falando. Conheço cidades fronteiriças da Bolívia (Puerto Suárez) e do Paraguai (Pedro Juan Caballero, Salto del Guayra e Ciudad del Leste), Montevidéo e algumas cidades do Uruguai, Passo de Los Libres e Buenos Aires, na Argentina,  Abdjan, na Costa do Marfim, Dakar, no Senegal, Washington e Nova York (por um dia… nem dormi na capital do mundo!)

Mas viajei muito o Brasil, capitais e interiores, como já escrevi aqui. Também não sou um rato de museus, mas em todos os lugares em que tive oportunidade, visitei-os. E a lista é considerável, indo dos museu da Inconfidência, em Ouro Preto, ao museu do Paço Imperial, em Penedo/SE, da Casa dos Escravos e sua Porta do Não Retorno, dedicado à memória do comércio de escravos, na ilha de Gorée, há 3 km de Dakar, ao Museu do Holocausto, em Washington.

Honestamente, não importa muito a riqueza aparente de um ou de outro, mas a importância e o respeito que o povo que o cria e o mantém dá e tem pela sua memória e pelo futuro de suas gerações, que precisam conhecer e entender a história do país, a história de seu povo, para se tornar uma nação digna – o do Holocausto é estupendo, como construção física e como organização interna, com suas salas e acervos conduzindo à história e ao morticínio dos judeus na Alemanha nazista, à qual se juntam constantes exposições de artistas sobre este tema. Quando passamos por lá, há mais de 15 anos, as ilustrações de Arthur Szyk davam um  real tapa na cara da gente. Para construção e aparelhamento do museu foram levantados 190 milhões de dólares, numa obra desenhada por James Freed, judeu sobrevivente do nazismo. Desde sua inauguração, em 1993, ele já foi visitado por mais de 30 milhões de pessoas, segundo a Wikipédia, a imensa maioria não judeus, o que explica, em parte, porque os judeus continuam sendo vitimizados  mais de 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial, mesmo tendo seu país se tornado uma potência bélica e nuclear.

Do outro lado do mundo, no pequeno Senegal, porta de saída de milhares de negros que sustentaram a riqueza de barões e ‘coronéis’ brasileiros e fazendeiros sulistas dos Estados Unidos, a Casa dos Escravos da Ilha de Gorèe, instalada numa antiga mansão de um dono de escravos por um africano chamado  Boubacar Ndiaye em 1962,  é contestada até hoje por historiadores europeus e americanos, que minimizam a importância do Senegal como exportador de escravos. Ou seja: a realidade exposta pela Porta de Não Retorno de Gorèe – que simboliza o tráfico e a deportação de 11 milhões de africanos, por ingleses, franceses, espanhóis, holandeses e portugueses para o continente americano, entre os séculos XVI e XIX, é tornada uma discussão bizantina. A de que o Senegal não tem importância histórica para a escravidão e que Gorèe “teria sido um ponto marginal do mercado escravista.” De qualquer modo, milhões de pessoas o visitam constantemente, apesar da desorganização tanto para chegar ao local, quanto para movimentar-se pelo museu.

Neste contexto é que eu insiro o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Um assunto que ocupou páginas e páginas de jornais e revistas, telas de tevês, ondas de rádios durante dias e dias, e continuaria ocupando por mais um pouco de tempo, não fosse a facada no Bolsonaro… Assim como o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, que já aconteceu há uns 05 meses e desapareceu do noticiário, com as dezenas de assassinatos posteriores, apesar da intervenção militar no Rio.

Aparentemente, autoridades e  povo brasileiros têm um respeito imensurável pela sua história e memória, tantos são seus museus, memoriais, palácios e igrejas conservados, a imensa maioria pelo Estado, mas também por entidades privadas e personagens poderosos. Só de museus, são mais de 03 mil, sendo 517 apenas em São Paulo. A maior parte deste patrimônio histórico é responsabilidade de uma entidade federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, que completou 80 anos em janeiro de 2017 (em 2009, foi criado o IBRAM, que passou a cuidar de 30 museus).

Nos atos comemorativos, muito pouco cobertos pela mídia, sua diretora, Kátia Bogéa, declarou, publicamente, que:  “O IPHAN já está correndo risco com um corpo técnico diminuto diante da suas complexas atribuições e da quantidade absurda de bens que temos sob nossa responsabilidade. Temos uma situação quase de insolvência”, vez que, segundo ela,  metade dos 698 funcionários da instituição deve se aposentar nos próximos dois anos, não havendo qualquer perspectiva de concursos públicos para preenchimento das vagas.

Fazendo um balanço da atuação do Instituto, sua diretora enumerou: “o Iphan vai entregar (em 2017) mais de 700 obras de restauração em 44 cidades, entre praças, mercados, passeios  públicos e pontes. O instituto tem sob sua proteção 40 bens imateriais registrados, 1.262 bens materiais tombados, oito terreiros de matrizes africanas, 24 mil sítios arqueológicos cadastrados, mais de um milhão de objetos arrolados (incluindo o acervo museológico), cerca de 250 mil volumes bibliográficos e vasta documentação de arquivo.”

E tem 698 funcionários mal remunerados, pois não “existe plano de carreira” para cuidar disto, digo eu! Só para efeito de comparação: cada deputado distrital em Brasília tem direito a 25 servidores indicados por ele próprio… como são 24 deputados distritais, só a Câmara Distrital do DF pode empregar 600 servidores sem concurso, pagando salários entre R$ R$ 980,98 e R$ 15.022,32.

O Brasil tem, além do DF, 26 Estados, com 26 Câmaras Estaduais, 513 deputados federais e 81 senadores. Em outras palavras: a democracia tem um custo, claro, mas tão importante quanto ela, deveria ser a preservação da memória nacional… Mas, poderosos e autoridades acham que memória nacional é apenas fazer o desfile das forças armadas no  07 de setembro e criar datas comemorativas de eventos e personagens da história! É muito mais do que isto, claro: é, simplesmente, ensinar todas as gerações que o país tem uma história, de lutas, de composições políticas, de fracassos e vitórias em sua busca por uma identidade.

Voltando ao incêndio do Museu Nacional: infelizmente, a grande imprensa, na pressa de ‘furar’ as redes sociais, não contextualiza o fato. Você tem que pinçar as informações aqui e ali. E o fato do incêndio do Museu devidamente contextualizado, é o seguinte: os recursos orçamentários da União destinados ao Museu Nacional desde 2014 eram R$515 mil, corrigidos anualmente. Nos últimos 03 anos, 2016, 17 e 18, pós-golpe, o Museu recebeu R$300 mil, via UFRJ, para sua manutenção, sendo só R$54 mil em 2018, por causa da limitação do teto de gastos por 20 anos (e nós estamos apenas no segundo ano desta limitação!)  Só para comparar: a Mesa da Câmara dos Deputados reservou  R$563 mil para deixar limpos, em 2018, os carros que servem os deputados, assim como estabeleceu cerca de R$500 mil/mês para as despesas presidenciais do Palácio Alvorada, que o presidente reserva apenas para reuniões políticas (não mora, não almoça, não janta e nem transa (?) lá!).

Na mesma linha, a verba carimbada para o Museu em 2018 (R$54 mil) é inferior ao salário mensal de dois juízes do STF (R$66 mil), sem penduricalhos… Este retrato da sociedade brasileira não vai ser alterado metralhando petistas, como propõe Bolsonaro, nem fingindo que o racismo não existe no Brasil, como diz o guru econômico da Marina, nem mantendo a paz dos cemitérios, como quer o Alkmim… Só o povo tem condições de mudar isto… E, infelizmente, não sei se o povo está disposto a fazer isto! O povo apenas se indigna.

Sei que estou ficando repetitivo, mas me parece que nada retrata mais o brasileiro atual que este texto (que publiquei aqui recentemente) do poeta português Miguel Torga, que o escreveu sobre seu próprio povo, o português, no início do século XX, coincidentemente o povo que nos colonizou: “É um fenômeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disso…” Nossa indignação é romântica e totalmente ineficaz… Ou, melhor, ela apenas se multiplica nas telas dos celulares…!

 

PS.: nossos tecno-burocratas geniais descobriram a forma de resolver os problemas dos museus e encaminharam à assinatura do presidente de fancaria, uma Medida Provisória que extingue o IBRAM, Instituto Brasileiro de Museus (que cuida de 30 dos mais de 3.000 museus do país, entre os quais não se inclui o que pegou fogo!) e cria a ABRAM, Agência Brasileira de Museus (para cuidar de todos…!), provavelmente  pela melhor sonorridade que a letra A tem sobre a letra I.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *