Vidas vazias?

Uma das vantagens de se chegar com a mente lúcida, mesmo que o corpo já tenha começado a ratear, à idade que eu estou hoje, é poder observar a vida com certa condescendência, permitida pelo distanciamento que podemos nos dar por não  precisarmos mais de lutar por ela diariamente. Isto, claro, desde que você tenha tido vida produtiva suficiente para se manter com dignidade e conforto até o seu Juízo Final. A gente se conscientiza de que a morte está cada vez mais próxima e disto não há escapatória. O melhor, então, é relaxar e gozar o que a vida ainda nos oferece de bom, como a dádiva de filhas, netos, amigos e a possibilidade de lutar os bons combates, que estes são sempre rejuvenescedores.

Tenho observado, porém, que muita gente não pensa assim… Conversando, atualmente, com pessoas da associação que participo aqui na minha região ou com ex-colegas de trabalho ou, mesmo, amigos de outros tempos que tenho reencontrado pelas redes sociais,  sinto uma insatisfação incontida, uma raiva latente em quase todos. Uma boa parte deles demonstra um inconformismo com a aposentadoria e uma indignação com a falta de oportunidades para pessoas de idade no mercado de trabalho. Sentem- se aptos, capazes, com uma experiência adquirida ao longo da vida de trabalho, que os torna bem superiores ao bando de jovens que ocupa as vagas de trabalho existentes.

E há outra parte que esquece de viver! Busca uma dependência física, afetiva, uma bengala onde se escorar para não ter que tomar decisões que o obriguem a assumir, de novo, responsabilidades pela condução de sua própria vida. Optam pelo sofá da sala, onde a tevê fechada ou os ‘Netflix’ da vida transmitem diuturnamente a vida perigosa e violenta, falsa e hipócrita do país e do mundo lá fora, ou os transportam para a fantasia dos filmes, onde a vida é sempre melhor do que a merda de vida que levam…!

Eu não me adapto a nenhuma destas posturas. Não posso dizer que solte foguetes pela vida que vivo, solitária e distante de filhas e netos, mas minha aposentadoria, se não é de juiz ou de deputado, é suficiente para eu ter uma vida sem dificuldades e até, quando  necessário, ajudar parentes menos afortunados. Ou seja: não tenho a menor disposição para voltar ao mercado de trabalho. Estive lá por quase 40 anos e, a par de ter colaborado para que minhas filhas obtivessem seus respectivos espaços no mundo, construí um patrimônio adequado ao meu padrão de vida, sem luxo, sem ostentação e sem necessidade ou dependência da família ou do Estado (a não ser a devida e merecida aposentadoria, claro! Que, aliás, não é lá grandes coisas, apesar dos meus 36 anos de trabalho, dos quais 33 de contribuição comprovada).

E, por isto, me dou ao luxo de observar, com olhar crítico, as atitudes de pessoas na mesma situação em que estou, com quem converso atualmente, seja nos trabalhos voluntários em prol da comunidade onde vivo, seja nas reuniões sociais, onde o vinho de boa safra e o uísque de muitos anos descem suaves e as palavras rolam livres, leves e soltas.

É impressionante o espírito patronal de alguns aposentados mais jovens que eu, que certamente exerceram funções de mando quando na ativa e acham que esta função “superior” continua sendo uma prerrogativa deles.  Mesmo combinando ações que exigem uma estreita colaboração de todos, em igualdade de condições, tais figuras não admitem ter suas ideias discutidas, elas tem que ser aceitas porque “eles entendem melhor do assunto”, porque “eles, quando trabalhavam, estudaram o assunto com afinco”, porque “é este o melhor caminho para atingirmos o nosso objetivo comum”. Se alguém insinua que há outro caminho que merece ser discutido, a figura fecha a cara, olha todos os presentes como se perguntasse “vocês acham que sabem mais do que eu?” e para de “colaborar” com o debate.

Outras figuras que me incomodam bastante são os bons samaritanos de fachada. Geralmente são frequentadores assíduos de igrejas ou templos, com os quais colaboram de todas as formas, especialmente em campanhas de arrecadação de recursos e bens, seja para fazer uma obra imprescindível no ‘local sagrado’, seja para distribuir presentes e roupas usados aos pobres, no Dia das Crianças ou no Inverno. Nada tenho contra a bondade e a solidariedade humanas, mas me irrita profundamente a necessidade que tais figuras têm de se mostrarem como responsáveis, como organizadoras das campanhas. A sensação que tenho é que eles ou elas estão querendo mandar um recado ao seu Deus: “Olhe o que estou fazendo pelas suas ovelhas… Reserve meu lugar ao Seu lado!”

Mas, tem um tipo pior que os citados até agora, os donos da verdade. Eles tomaram conta das redes sociais. Sabem tudo, têm opinião “abalizada” sobre tudo, cagam regras para tudo e qualquer coisa… e não admitem contestação! Nestes tempos de ódio desenfreado que permeia o relacionamento humano em nosso país, então, ficou extremamente difícil manter-se um diálogo equilibrado até mesmo numa mesa de bar: tais figuras sempre aparecem com uma novidade, um post, um meme, uma fake news que, por corroborar a sua própria verdade, torna-se uma verdade absoluta, por mais estúpida que seja, e precisa ser ouvida e engolida por todos os demais. E ai de quem tentar argumentar!

Numa reunião no dia seguinte ao primeiro debate televisivo dos presidenciáveis, uma destas figuras, militar da reserva, já chegou à reunião esbravejando: “Eu não disse? Há quanto tempo eu estou falando que os comunistas querem tomar toda a América Latina e nos transformar numa Venezuela, submetendo-nos à ditadura cubano-chavista? Criaram até uma organização, a URSAL, que vem solapando a moral e os costumes do Brasil há 50 anos…! Ainda bem que temos gente de visão neste país, capaz de trazer a palavra de Deus e nos livrar deste ateísmo satânico que está corroendo a alma brasileira…!”

Eu li sobre o debate, não assisti. E tinha ficado grilado com esta URSAL citada por um dos presidenciáveis, Cabo Dacciolo, ex bombeiro, evangélico e do partido Patriota. Curioso, fui pesquisar. Descobri que URSAL, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, foi uma criação da socióloga e professora universitária aposentada Maria Lucia Victor Barbosa, que disse à Folha ter inventado o termo em 2001 como uma ironia, uma crítica ao Foro de São Paulo, que ocorreu naquele ano. Informei  isto na reunião, apenas para esclarecer… A reunião nem começou… A figura se sentiu ofendida, me chamou de comunista ateu e se mandou…!

Da mesma forma, estes dias, num ‘Arraiá’ promovido por uma amiga aqui na comunidade, o comentário geral num grupo de velhos ao qual me acheguei, era a posição liminar do Comitê de Direitos Humanos da ONU, que determinou que o Estado (o Estado, não o Governo!) tome as medidas necessárias para garantir a participação do candidato Luiz Inácio Lula da Silva na disputa eleitoral à Presidência da República de 2018.

Outra figura, bolsonarista e ativista das redes sociais, apesar dos quase 70 anos, ou por isto, que construiu seu patrimônio durante a ditadura militar (não façam julgamentos, por favor: que eu saiba, ele construiu seu patrimônio trabalhando honestamente, não se aproveitando do período de censura e tortura, tão comum nos velhos que saíram às ruas, anos atrás, pedindo a volta dos militares ao poder!), foi veemente: “A ONU não tem o direito de interferir nas questões internas do Brasil, c……*! Ela não consegue nem impedir os homens-bomba palestinos de matar judeus! A ONU que vá para a p…* que o pariu!”

Eu já disse aqui no blog que eu não gosto de briga. E que sou um cara racional que tenta discutir ideias, posturas políticas, posições na vida, sem emocionalizar… Daí, argumentei que o Brasil era membro da ONU desde sua fundação (manda a tradição, inclusive, que o discurso da sessão anual inaugural da ONU seja feita por um brasileiro, já que foi o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Oswaldo Aranha, quem fez o discurso de instalação da ONU em 1948) e tinha uma tradição de cumprir as resoluções da ONU e de suas instâncias. Pra quê? O cara ficou uma fera!

“O Brasil não tem que obedecer p….* nenhuma! Naquela b….* da ONU só tem ‘bichas’ e comunistas!”  Alguns dos velhos presentes concordaram comigo e disseram que o assunto era sério… uma admoestação da ONU era grave e não podia, simplesmente, ser considerada babaquice. Pra quê? O cara ficou apoplético! “Ninguém manda no Brasil!  Só nós”!

Doce ilusão… Ou, melhor: sweet illusion!

 

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