A despedida (II)

— Meu avô tinha uma biblioteca imensa em sua mansão de São Paulo. Ele tinha canaviais em Pernambuco, mas resolveu investir no Sul quando meu pai veio fazer faculdade em São Paulo. Ficou mais rico ainda, mas não era bem aceito pela sociedade quatrocentona. Daí, comprou um sobradão de uma família tradicional falida, comprou livros a quilo, mandou encadernar tudo – capas duras com títulos amarelo-ouro nas lombadas – o que deixava boquiabertos os convidados de seus saraus. Muitas vezes, ouvi ele dizer, arrotando sua esperteza: — Nunca li um só desses livros, mas ser dono deles me abriu as portas de grandes negócios…!

— Você conviveu com ele? – normalmente, leitores compulsivos como eu tem uma imagem pouco agradável de barões nordestinos de terra, como o avô de Pedro Jerônimo, que costumam parecer machões estúpidos que nunca aceitam um filho ou neto homossexual. Ele sorriu e brincou: “É uma boa pergunta, o que mostra que você é um bom jornalista… Para ficar bem claro: meu avô nunca admitiu minha homossexualidade…!”

— E o que você fez?

— Aceitei… Meu pai dizia que a culpa era de minha babá, que me mimava muito… e acabou por deixar minha criação por conta de meu avô. Meu pai era o segundo filho e o substituto de meu avô, por tradição, seria o mais velho que, aliás, ficou tocando as usinas e as terras. Daí, com diploma de doutor advogado, meu pai e minha mãe passaram a vida gozando a vida, viajando pelo mundo. Eu fui um acidente… Enquanto minha avó esteve viva, houve carinho, afeição, amor e uma proteção contra meu avô. Depois, aquela ordem unida: eu mando, você obedece.

— E você obedeceu?

— Claro! Alguém acostumado a luxo e riqueza ser deserdado pela família, sendo bicha ainda por cima, ia viver de quê? Caçando macho na São João? Virei “homem” em pouco tempo! Me transformei no orgulho de meu avô… um troféu que ele levava para todo lado e fazia questão de mostrar como seu neto mais promissor. Virei o solteiro mais cobiçado da sociedade, alguém que, para ódio de meu tio, iria assumir o império abençoado por meu avô.

— E foi?

— Não. Estava tudo caminhando para isto. Eu sempre tive um tino para os negócios urbanos e meu avô me colocou como assessor dele nas empresas e arranjou meu casamento com uma quarta filha de uma família com sobrenome tradicional da Paulicéia, uma jovem extremamente católica e submissa que acreditava piamente que casamento era um ato sagrado em que o dever da mulher era servir o marido e ter filhos para servir a Deus.

— E quantos filhos você teve? – disse eu, com um irresistível sorriso irônico.

— Nenhum! Na lua de mel, eu fui mais ou menos direto com minha mulher: eu não gosto de sexo! O contato corporal de uma mulher me dá ânsia de vômito! Dentro da sua religiosidade, ela também não apreciava muito o contato físico e, rapidamente, se ajeitou à nossa convivência: éramos um casal ‘modelo’, sempre carinhoso em público, que ‘sofria’ com um castigo divino, não tínhamos filhos que abençoassem mais já tão abençoada união!

— E como é que Jean Philipe entrou nesta união perfeita?

— Nós já estávamos casados há uns 10 anos quando ela se apaixonou perdidamente por um professor de ginástica… e jogou toda a religiosidade, pudores e conveniências para a p…” que pariu! Ficou grávida! Meu avô já se afastara dos negócios, que eram tocados por meu tio – meu pai continuava flanando pelo mundo e a família, meu avô na verdade, achava perigoso um comandante sem filhos na direção do império, para alegria de meu tio, que tinha seis herdeiros – mas ainda comandava, com mão de ferro nordestina, a família toda. Quando ele soube da gravidez e descobriu as verdades sobre meu casamento e minhas preferências sexuais, teve um ataque de apoplexia…

— E expulsou os dois da família?

— Não! O escândalo seria muito vergonhoso para a família. Ele, simplesmente, nos mandou para os Estados Unidos, obrigou minha mulher a abortar – o dinheiro pode tudo, meu caro! – e nos proibiu de voltar ao Brasil, o que eu só consegui fazer depois da morte dele. Divorciei de minha mulher, que casou-se com um porto riquenho e ficou por lá. No final, deu tudo certo: eu conheci Jean Philipe dirigindo uma casa de sexo livre na Califórnia. Amor à primeira vista… Com a morte do avô, meu pai vendeu sua parte da herança, reservou uma boa bolada para ele continuar não fazendo nada pelo mundo e transferiu outra imensa bolada para mim, filho único. Com ela, montamos a primeira casa de sexo livre em São Paulo, depois em Campinas, depois em Porto Alegre, Fortaleza e Brasília… Enfim, uma história de amor com final feliz, não acha? (continua)

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