A despedida (III)

Dezinha e Jean Philipe estavam voltando para a mesa, acompanhados por um cinquentão que eu conhecia de jornais e  telejornais, Luiscarlysson Lemos*, deputado que vinha se destacando muito por seu posicionamento radical em relação à violência cada vez mais explosiva no Brasil (“todo brasileiro de bem tem direito de possuir uma arma!”) e os movimentos crescentes pela descriminalização do aborto (quem faz aborto, é assassina! tem que ser presa e condenada!”).

— Meu querido – Dezinha foi bem expressiva em relação a mim, e mordaz, em relação ao deputado – está aqui outro grande amigo que gosta muito de falar com jornalistas, desde que você não diga onde a entrevista foi feita… Eu dei um sorriso constrangido, vi que o nobre deputado tinha ficado desconfiado e esclareci que já estava aposentado, tinha um blog escrito apenas para os amigos e não tinha a menor intenção de entrevistar outro amigo querido de Dezinha, apesar da minha curiosidade em entender as posições dele, que eu achava conflitantes. Ele abriu um largo sorriso, colocou as mãos sobre meus ombros, empurrou-me gentilmente de volta à minha cadeira e sentou-se também, enquanto Dezinha voltava para os demais convidados.

— Muito me alegra saber que o colega – eu também sou jornalista, agora servindo aos meus fiéis e à minha região como deputado – tem ouvido e prestado atenção em minha pregação pela moralidade deste país… E em que não há qualquer divergência! Eu sou um defensor intransigente da vida! Da vida útil, da vida honesta, da vida honrada… Ninguém tem o direito de tirar a vida de um ser tão logo ele seja concebido pela graça de Deus, e nenhum meliante que tire a vida de um cidadão honrado, trabalhador e pai de família exemplar, tem o direito de continuar vivendo neste paraíso criado por Nosso Senhor…

— Perdoe-me, deputado, mas é intrigante, pelo menos… Os ensinamentos de seu Deus Todo Poderoso e sua Igreja sempre foram uma ilha de paz e amor no meio das multidões insanas, exceto na Inquisição, claro… Nos tempos atuais, do Papa Francisco, aplaudir os representantes do Estado por matar um ser humano porque ele matou outro ser humano, sem julgamento, não é ir contra os ensinamentos de Deus…?

— Você leu a Bíblia, meu amigo? Tenho certeza absoluta que não…! Eu li… Decorei até! Deus nunca foi ‘paz e amor’! Jesus sim… Jesus pregava o amor ao próximo, mesmo que o próximo fosse um inimigo sanguinário. Há uma antiga lei citada nos Evangelhos, “olho por olho, dente por dente”, que diz exatamente o que Deus queria para a humanidade que ele criou. Relembre Sodoma e Gomorra… relembre as muralhas de Jericó… Quando nosso Brasil for governado por gente que pensa como eu, não tenho dúvida que o país ficará seguro, livre de bandidos e assassinos, livre deste comunismo pagão que assassina fetos e ameaça nossa democracia…

— E livre de homossexuais, transexuais, gays e coisas tais? – não resisti à provocação, já que Jean Philipe e Pedro Jerônimo estavam à mesa, apesar de quietos… O deputado aparou o golpe, deu um sorriso para os dois, ficou quieto alguns minutos e saiu-se bem:

— É óbvio que Deus só abençoa uniões destinadas à procriação… Homem com homem, mulher com mulher são aberrações da natureza! Mas existem exceções, em que o amor se sobrepõe aos desígnios de Deus. Eu tenho absoluta convicção que nosso Pedro Jerônimo nasceu mulher e só não se tornou uma mulher biológica porque seu avô era um primata… – Sorriu para Pedro Jerônimo, que assentiu com a cabeça… A propósito, Jean Philipe, eu já tenho o terreno ideal para vocês instalarem um clube na minha região… Já está na hora de vocês se expandirem para o Interior, não acham?

— Desculpe-me, deputado… sua igreja não admite a biologia na criação e evolução do mundo, sua igreja não admite que as mulheres possam ter desejos como o homem…

— Mas é óbvio que não…! Mulheres foram criadas por Deus para servir ao homem e para procriar e povoar o mundo de seres tementes a Deus! Olhe só a anatomia física da mulher… Propícia a receber a semente do homem, que transforma um ser em reprodutor de outro ser… Quer coisa mais fantasticamente divina que isto?

Meus companheiros de mesa só ouviam e eu, apesar de ter vontade de ampliar a discussão, tentei me segurar. Não havia mulheres por perto para contestar e defender a classe. Mas, olhando todas aquelas mulheres inteiramente disponibilizadas para os homens presentes e certo de que nenhuma delas estava ali como procriadora e povoadora do mundo de Deus, não resisti à ironia:

— Me permite uma observação simplória, deputado? Nós estamos num pequeno Jardim do Éden machista onde as mulheres seguem apenas uma, segundo o senhor, determinação divina, servir o homem e, tenho certeza – me corrija se eu estiver errado, Jean Philipe – se cumprirem as outras duas, serão expulsas deste ‘Paraíso’. Sua constante presença aqui, sua ‘força’ para que nossos amigos continuem expandindo seus negócios, não é um tanto ou quanto incoerente com sua pregação? Jean Philipe balançou imperceptivelmente a cabeça e Pedro Jerônimo deu um leve sorriso, enquanto Luizcarlysson levantava-se da mesa e, alteando um pouco a voz, como se estivesse num púlpito, pregou:

— Absolutamente, meu caro… absolutamente! Deus deu estruturas físicas e psicológicas diferentes para homens e mulheres. Elas têm a dádiva divina da maternidade, não podem estar sempre disponíveis para seus maridos, que estão sempre prontos para liberar sua seiva frutificadora que germina a vida neste mundo de Deus. Esta seiva não pode ser desperdiçada num preservativo, no vaso de um banheiro ou nos lençóis de uma cama. Ela tem que ser colhida, absorvida por outras mulheres que, mesmo não criando outras vidas, serão depositárias fiéis de outra dádiva divina, a semente da masculinidade.

Confesso que fiquei chocado com a justificativa divinal para a prostituição que o deputado acabara de me oferecer. Olhei para os demais participantes da mesa e não me pareceram chocados também… ao contrário, a perspectiva negocial era interessante. O decoreba que Luiscarlysson fez da Bíblia o levou a criar teorias nas quais acreditava piamente e, pior, transmitia a outros, que acreditavam também, tanto que ele era deputado federal eleito com milhares de votos, principalmente de devotos de sua igreja pentecostal, monocostal, quadrangular, do 25° dia ou qualquer nomenclatura destas aí!

Minha vontade de vomitar foi quase irreprimível… Minha sorte é que Dezinha se aproximou e disse ao deputado que seu motorista já o estava esperando – ia ter uma sessão noturna na Câmara. Em vez de vomitar, fui sacana (quem sabe eu vomitava no carro dele?), aproveitei a oportunidade (meu amigo doutor não voltaria para casa, certamente) e pedi, para evidente decepção de Dezinha, uma carona para o deputado – minha chácara ficava no caminho dele, o que ele acedeu imediatamente.

Coloquei meu braço sobre os ombros de Dezinha – ela merecia isto – e saímos acompanhando o deputado, que sorria e dava adeusinhos para os presentes, a esta altura não tão bem comportados: ou as “meninas” já estavam sentadas em seus colos ou eles as lambiam sofregamente, tentando convencê-las a ir para um dos bangalôs antes mesmo de se cantar o ‘tchau tchau, Dezinha’, ato final de sua despedida.

Chegando ao carro, uma surpresa, visivelmente demonstrada por Dezinha, que não admitia que ‘suas meninas’ saíssem do clube para programas particulares: duas delas aguardavam no banco de trás do carro. O deputado notou o desagrado de Dezinha e foi cruel: “A sessão de agora vai ser bastante pesada, Dezinha… e eu vou precisar de um bom estimulante quando voltar para o apart-hotel. Não se preocupe, eu falei com sua substituta… E você sabe: raínha morta… raínha posta!

Dei um longo abraço em Dezinha (que me passou um cartão com seu novo endereço em Prado, na Bahia). Sua despedida estava consolidada… e era definitiva.

*Todos os nomes são naturalmente fictícios.

 

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