A zona

Eu nunca soube por que, nos bons tempos da minha juventude, a área onde se concentravam casas de prostituição era chamada de zona. Tentei descobrir agora, mas não há nada específico, em dicionários ou no Google informando a origem da palavra com esta conotação de local “liberado” para o meretrício. O mais próximo que se pode deduzir é que uma zona era uma ‘zona’, um lugar presumivelmente sem lei e sem ordem (já que a prostituição, apesar de milenar, é legalmente proibida, mesmo que inteiramente tolerada pela hipocrisia da sociedade), onde reina a bagunça e a desorganização.

Nestes bons tempos joviais eu fui algumas vezes à zona de Belo Horizonte, que ficava na rua Guaicurus, num canto meio escondido do centro. Mas, seja porque, para meus olhos jovens, toda aquela agitação dos bares sempre entupidos de gente bebendo, rindo, se esfregando, gritando acima da confusão de músicas, seja porque para meu jovem corpo ansioso, todas aquelas mulheres pintadas, pernas e ombros (e mais coisas) à mostra, eram excitantes, eu não via bagunça ou desorganização no ambiente… via apenas alegria!

Acho que o termo zona, hoje, foi aposentado. O sexo se tornou mais banal, menos misterioso, as garotas transam com merecida naturalidade e os garotos não precisam procurar “locais apropriados” para demonstrar “machismo” e descarregar a virilidade, como os garotos do meu tempo precisavam fazer. Os bordéis, as casas de madames, os lupanares continuam existindo, claro, mas não mais com aquela característica de gueto, casinhas de lâmpadas vermelhas em ruas escuras perdidas em cantos semiescondidos das cidades. Há muitos até, como o que fica na região rural onde moro, que já descrevi aqui (Um lugar sem crise), que até anunciam suas maravilhas na Internet.

Neste aspecto, eu me orgulho de ser parte de uma geração que ampliou os horizontes de uma sociedade conservadora e hipócrita, que derrubou tabus e preconceitos, que ensinou e induziu as gerações mais jovens a continuar lutando por maior liberdade de ser e de existir. Mas, ao mesmo tempo, me decepciono com o desprezo que estas gerações mais jovens dedicaram à política, à coletividade e à institucionalidade do país.

É impressionante como a Constituição de 88 – com 30 anos apenas – é desrespeitada continuamente, por Executivo, Legislativo e Judiciário, até mesmo pelo seu órgão mais supremo, que é o seu guardião. É impressionante como pessoas eleitas para representar os anseios de uma população ainda pobre e inculta, se desdobram, sem qualquer pudor, em defender apenas os seus próprios interesses ou de suas corporações; é irritante ver que pessoas que se esforçam para passar em concursos de carreiras nobres do Estado, como as de policiais, procuradores e juízes, depois que passam, arrotam o respeito às leis, mas descobrem e aplicam ‘jeitinhos’ para aumentar as próprias remunerações.               

Na verdade, se fosse só isto, ‘os jeitinhos’, até que eu não ficaria muito preocupado com o futuro de meus netos e bisnetos nesta terra chamada Brasilis. A Internet ainda livre, as redes sociais sem qualquer pré-controle estatal ou judicial, apesar do lado negativo e perigoso, estão propiciando à massa brasileira uma visão ampla do país, do mundo e da vida, algo que a educação formal não conseguiu fazer e os meios de comunicação tradicionais sempre procuraram omitir ou fantasiar.

Mais dia, menos dia, gente séria e comprometida com o país e com seu povo terá maioria no Congresso… mais dia, menos dia, jovens de todos os estratos sociais farão concurso não porque os salários e seus penduricalhos garantam um futuro tranquilo de casa própria, casa de praia, dinheiro investido em bolsa, filho em colégio particular, carro do ano na garagem e férias familiares em Miami, Nova York ou Paris, mas porque é uma forma digna de servir ao povo que paga estes salários (eu sou otimista, gente! Acredito no ser humano!)

Na verdade, o que me preocupa hoje é, exatamente, o que me levou a lembrar da palavra zona, que inicia este texto: a zona em que se encontra a Justiça brasileira, uma zona provocada por uma situação envolvendo um único cidadão chamado Lula…! A minha geração teve uma imensa decepção com a Justiça brasileira, apesar de reconhecer que havia juízes que honravam as togas que vestiam: durante a ditadura, a Suprema Corte respaldou todas as arbitrariedades cometidas, ou omitiu-se, vergonhosamente. Mas só depois que defenestrou os que as honravam. No Supremo de hoje a gente não tem juízes, mas políticos comprometidos com sua corporação e com suas posturas políticas ou, tão ruim quanto, com sua mediocridade

Estes juízes honraram a toga: foram cassados ou se aposentaram do STJ

Não é atoa que qualquer análise sobre a situação política no Brasil de hoje acabe discutindo a postura do Supremo Tribunal Federal. É doloroso ver/ouvir os especialistas da Globo News ou Record News ou Band News comentando que a 2ª Turma do STJ, considerada ‘garantista’ se tornará ‘consenqüencialista” com a substituição do ministro Dias Toffoli pela ministra Carmem Lúcia. E que há um risco muito grande do ministro Dias Toffoli, que será presidente do STJ em setembro, substituindo a ministra Carmem Lúcia, ter uma postura pró-lulista, ao contrário da futura ex-presidente, que tem uma postura anti-lulista. Honestamente, isto é Justiça? Onde será que se perdeu a imparcialidade? Onde será que esconderam aquela premissa de que um juiz só se manifesta nos autos?

O mais recente exemplo desta zona foi o habeas corpus dado pelo desembargador Favreto ao prisioneiro Lula. Num domingo pós perda da Copa, em plenas férias judiciais, um desembargador de plantão acata o pedido de advogados/deputados do PT e concede a liberdade a Lula, preso há 03 meses na Polícia Federal de Curitiba.

O juiz que condenou Lula (Sérgio Moro) estava de férias em Portugal e o cumprimento da ordem de soltura de Lula deveria ser dada pelo juiz substituto, mas Moro interferiu e descumpriu a ordem, contrariando uma decisão hierarquicamente superior e pedindo socorro a seu compadre desembargador Gebran Neto que, num domingo, socorreu-o, anulando a decisão do juiz plantonista… o que, juridicamente, não podia ser feito.              

Enquanto o delegado responsável pela prisão onde estava Lula enrolava a sua soltura, movimentaram-se as poderosas forças antilulistas. Eu acompanhei o esforço inaudito da Globo  pela manutenção da prisão: os “especialistas” chamados a opinar, o gestual dos apresentadores, a repetição da repórter que cobre diuturnamente a Lava Jato que, a cada ‘entrada’ ao vivo (e foram várias), fazia questão de repetir que “Lula foi condenado a 10 anos e 03 meses de prisão por receber propina no caso do tríplex”… (Quem não viu e tiver saco, vale a pena assistir uma destas intervenções globais, especialmente a parte da repórter especial da Lava Jato). E foi um tal de manda soltar, não solta, manda soltar, não solta… com o delegado da PF de Curitiba devidamente instruído pelo ministro da Segurança, por sua vez orientado pelo presidente do TRF da 4ª Região.

Nesta masturbação judicial, transcorreu o domingo, encerrado com a decisão monocrática deste presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores (o mesmo que disse algum tempo atrás que, apesar de ser uma impressão apenas técnica,  a sentença de Moro pedindo a condenação de Lula era irrepreensível), de que Lula tinha que permanecer preso.

Encerrada a zona dominical, o tema subiu à instância superior, tendo a ministra Laurita Vaz, presidente do Superior Tribunal de Justiça e plantonista, em rápida análise monocrática (o STJ também está de férias…) não só negado o habeas corpus de Lula, mas descido o cacete no juiz Favreto, ao mesmo tempo em que elogiava a postura do juiz Moro em “desobedecer” ordens superiores. Mas, não houve qualquer surpresa nesta decisão.

A eminente juíza Laurita Vaz é a mesma que, noutro recesso do Judiciário, negou habeas corpus a uma mãe que estava amamentando um filho (ela foi presa levando 8,5 gramas de maconha para o marido numa penitenciária), alegando que o bebê poderia ser amamentado na prisão.

Uma decisão coerente, aliás, com sua postura ortodoxa: ela já tinha, em 2004, dado uma decisão liminar favorável a pedido feito por um padre, impedindo uma interrupção de gravidez de anencéfalo. Apesar de não haver coerência com outra decisão dela, também como plantonista num domingo, libertando Roger Abdelmassih da cadeia, aquele médico condenado a 181 anos de prisão por estuprar 37 de suas pacientes, e mandando-o cumprir a pena em sua mansão. E com sua postura corporativista: em um processo para não pagar imposto de renda sobre um benefício dado a magistrados, contrariando decisões anteriores do próprio Tribunal, ela julgou favoravelmente ao não pagamento, beneficiando a si própria. Como escreveu o BuzzFeed News, “ao ser questionada, a presidente do STJ admitiu que não poderia atuar no caso” e anunciou que iria anular a sua decisão no processo. Eu não tenho informações se, realmente, anulou.

Diante desta realidade vivida pelo Brasil hoje, eu me pergunto: onde está a verdadeira zona? Na casa de suingue e prostituição comandada por Dezinha aqui na minha região, ou na poderosa justiça brasileira, cheia de penduricalhos remuneratórios, conduzida pela eminente ministra Carmem Lúcia que, aliás, permaneceu de férias durante este domingo em que ficou evidente o nivelamento da Justiça aos Legislativo e Executivo atuais.

Honestamente, as mulheres da vida da minha juventude e da minha velhice eram e são mais íntegras verdadeiras que os hipócritas que fazem as leis, governam e aplicam a Justiça no Brasil de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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