Justiça divina

Há pouco, eu contei sobre minha jornada de míope para a escuridão. Ali eu disse da imensa alegria que tive ao usar óculos a partir dos 12 anos, da evolução da miopia, 0,5 e 1,5 até 5,5 e 9 graus, da catarata, da ruptura da retina do olho esquerdo e, por fim, do derrame no olho direito. Uma jornada de 58 anos extremamente aflitiva hoje porque, para alguém que fez da leitura e da escrita a sua vida, chegar ao fim sem ler nem escrever é um castigo inominável do destino (ou, talvez, do Deus vingador, que me viu aqui embaixo e disse: É isto aí, seu besta… Você não crê em mim… está vendo agora o que eu faço?)

Bem, eu sou capricorniano, ou seja, teimoso! E ainda acho que consigo vencer a escuridão. Enquanto não arrumo uma bela digitadora de companheira, vou tentando salvar meu olho direito (vai que eu não consiga arrumar nem uma digitadora!). Quando do descolamento da retina, apesar do alerta do médico que a demora em trata-la reduzia as possibilidades de resolver o problema, eu me persignei três vezes, apelei para os deuses nos quais não acredito e para enfrentar o bisturi no olho, lembrei até de Santa Rita de Cássia, advogada das causas perdidas e santa do impossível, em cuja igreja eu me casei. E fiz cinco operações no prazo de dois anos e meio (a esperança é a última que morre, né mesmo?).

Até agora não resolveu p….* nenhuma! Eu tenho entre 5 e 10% de visão do olho esquerdo e o doutor continua relutando em retirar o silicone lá colocado, com receio de que a retina, que é muito tênue, possa descolar-se definitivamente, o que me levaria à escuridão total de um lado. O que não deixa de ser um contrassenso: há muito tempo que as mulheres implantam silicone para moldar peitos e bundas para serem melhor apreciadas pelos espelhos, pelas amigas e, claro, pelos homens… já eu preciso eliminar o silicone do olho para melhor apreciar e encontrar uma digitadora!

Quanto ao olho direito, diz ele (o oftalmologista) que o derrame é um problema bem mais simples que uma ruptura da retina. Quem tem miopia muito forte como eu, está sujeito, ao envelhecer, a este problema, que é, nada mais, nada menos, que a formação, endurecimento e rompimento de vaso sanguíneo do olho, o que provoca o embaçamento da visão. E existem soluções para resolver o problema, como esta que eu estou fazendo.

Um mês atrás, convencido pelo médico, tomei uma primeira injeção no olho. Fui convencido porque ele me garantiu que injeção no olho não doía absolutamente nada. E eu acreditei porque já tinha corrigido a catarata nos dois olhos e feito as 05 operações no olho esquerdo, tentando resolver a ruptura da retina. Mas, injeção é injeção e eu estava apavorado ao entrar para a saleta de espera… Foi uma longa espera… mas, em 05 minutos, a injeção foi aplicada e, realmente, não doeu nada!

Um mês depois, voltei à clínica para uma avaliação. Há um exame moderníssimo hoje, que fotografa seu olho em três dimensões – o que elimina aquela ‘velha’ história de dilatar as pupilas – e que mostrou que a mancha no olho tinha se reduzido a 30%, o que era muito bom, mas não evitava a necessidade de outra injeção (de acordo com o doutor, o normal são três injeções e, tudo indicava, eu só precisaria de duas…). Vamos que fomos, então…

Meu belo olho direito…

No processo relativo à primeira injeção, eu não prestei muita atenção nas preliminares e, muito menos, nos companheiros de ‘infortúnio’ da sala de espera. Nesta segunda, muito senhor de mim mesmo – já sabia que não ia doer nada – observei tudo à minha volta. Na salinha dos ‘derramados’, ou seja, dos que tiveram derrame como eu, havia 04 idosos, dois homens e duas mulheres, além de mim – aí lembrei que na primeira injeção também só havia idosos na salinha – e idosos adoram conversar! Em fila de banco, em fila de supermercado… tem uns que costumam ir ao INSS todo mês, só para entrar numa filinha e falar dos problemas comuns.

Os dois velhos assistiam o noticiário da tevê, mas não prestavam atenção, porque comentavam as últimas peripécias do governo Temer relativas à greve dos caminhoneiros; as duas senhoras trocavam informações sobre a próxima injeção. Interessei-me pela conversa delas porque uma, bem idosa, me pareceu apavorada com a perspectiva de levar uma injeção no olho. Entrei na conversa:

– Não se preocupe, minha senhora, mês passado eu tomei esta injeção e, posso lhe garantir, não dói nem um pouquinho…

– Eu não estou preocupada com a dor, filho… Quem teve 12 filhos como eu, e já enterrou 04, não tem medo de dor! Eu estou com medo é de ficar cega… Eu tive uma vida muito sofrida. Nunca pude apreciar as tantas coisas boas e belas que a vida nos oferece… sempre cuidando de marido, de filhos, de netos…  Mas me conformava, sempre rezando a Deus para nos olhar, nos proteger e nos dar força para seguir em frente. Agora que meu marido morreu, que os netos já estão se virando e que uma nora resolveu cuidar de mim, viajar comigo, me levar para ver o Papa… eu fico cega? Deus não é justo comigo!

Seus olhos ficaram molhados… lágrimas escorrendo pela face enrugada. Os dois velhos pararam de falar, a outra senhora baixou a cabeça e eu, rapidamente, passei o lenço de papel no olho direito e fiquei calado. Dizer o quê? Que Deus sabe o que faz? Que sangue de Jesus tem poder? Ou que Deus não costuma mesmo ser justo!

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