Rescaldo do Brasil Nunca Mais (II)

Em 1969, quando entrei no Curso de Jornalismo da FAFICH/UFMG, fiquei sabendo, com detalhes, da invasão da Faculdade pelos militares, acontecida pouco antes, em outubro de 1968. Houve uma denúncia de que alunos estavam reunidos lá, preparando-se para o Congresso da UNE em Ibiúna. O então diretor foi chamado para uma reunião na Secretaria de Segurança e, quando voltou, encontrou o prédio da Rua Carangola cercado por tropas militares, com um objetivo claro: invadir a Faculdade e prender os líderes estudantis e quem mais resistisse à invasão. Pois houve resistência de alunos, funcionários e professores, que se espalharam pelos andares do prédio e montaram barreiras, com mesas e carteiras pelas escadas, além de desligarem os elevadores, para impedir o avanço dos soldados. Após muita negociação do diretor com o comando do Exército e a interferência do então vice presidente da República, o mineiro Pedro Aleixo, a invasão ficou no saguão do prédio e os “suspeitos” conseguiram sair sem serem presos.

Ou seja, a UnB, que tinha uma aura de “antro do comunismo”, por ter sido criada pelo Darcy Ribeiro, não foi a única universidade visada pela ditadura não… Eles tinham era medo da liberdade e da rebeldia natural dos jovens! Aliás, me parece estranho alguém ter sido universitário da UNB naquela época e, pelo que escreveu, desconhecer sua invasão pelas forças militares.

Mas é fácil relembrar: no Google, há várias informações, vídeos, filmetes, fotografias, abordando aqueles tempos de todos os lados, contrários ou favoráveis. Há um, inclusive, muito interessante: “História Hoje: Há 48 anos campus da UnB era invadido por militares da ditadura”, sobre a invasão ocorrida no dia 29 de agosto de 1968. O que será que este meu leitor/comentarista fazia neste dia? Ainda não era universitário ou, por sorte, não foi às aulas?

Em seu comentário, aliás, ele vai além: “Ah, os terroristas, que mataram brasileiros para implantar o comunismo no Brasil, foram presos, alguns torturados (assim como o Colina, o MR8, Valpalmares, Marighela, Fernando Pimentel, Ze Dirceu, Dilma e muitos outros fizeram também), mas Graças a Deus não conseguiram. Em uma guerra há ganhadores e perdedores. GRAÇAS A DEUS, O BRASIL VENCEU O COMUNISMO! (…)

Honestamente, eu não entendo estas pessoas que concordam com uma violência desumana, como a tortura, porque o lado contrário a teria praticado também! Prisões por divergência de ideias, tortura e assassinato de adversários políticos, como fizeram e fazem  os nazi-fascistas, os comunistas e os ditadores e terroristas de todos os matizes, é uma infâmia, uma degradação do ser humano. Justificar ou desculpar atos desta natureza é admitir a própria incapacidade de amar o próximo, como pregou Jesus, o filho do Deus a quem estas pessoas, vira e mexe, dão graças por qualquer coisa.

Outra coisa que eu não entendo é a balança que estas pessoas usam para equilibrar a tal guerra que dizem ter havido naqueles tempos sombrios: os “grupos inimigos” da ditadura, como os citados Colina, MR8, Varpalmares, foram destroçados política e fisicamente – os documentos da CIA recém-divulgados pela imprensa anotam claramente 104 assassinatos autorizados diretamente pela alta cúpula da ditadura – e os demais nomes indicados foram mortos ou presos, torturados e condenados pela “Justiça” de então:

Marighela, líder da ALN morreu com quatro tiros numa emboscada policial na alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, em São Paulo (numa história de enfrentamento ainda nebulosa: as fotos acima, do mesmo fotógrafo, mostram como o corpo foi divulgado na mídia e como ele foi encontrado de fato); Fernando Pimentel ficou preso entre 1970 e 1973; Zé Dirceu foi preso em 1968 no Congresso da UNE em Ibiúna e, solto em troca da libertação do embaixador americano sequestrado no Rio, teve sua nacionalidade cassada, foi banido e deportado do Brasil (para onde voltou clandestinamente); Dilma foi presa e torturada por vinte e dois dias com palmatória, socos, pau de arara e choques elétricos e, depois, condenada pelo STM a 06, cumpriu 03 anos de prisão.

Numa guerra, como diz meu ‘inadmoestado’ leitor, “há ganhadores e perdedores”, com o que não concordo, pois acho que numa guerra só há perdedores. Mas, evidentemente, há os que se acham vencedores: os que mataram mais, os que, ao final da guerra, ocuparam o espaço ou as ideias ou o tipo de governo em disputa. Mas, terminada a ‘guerra’ e feita a paz, para que esta paz persista, é necessário que os excessos cometidos sejam apontados, julgados e, se for o caso, punidos.

Na e após a (me permitam chamar de) ‘guerra intestina’ brasileira entre 1964 e 1985, algum militar ou policial torturador foi indiciado, julgado ou condenado? Algum empresário que, como Boilesen, da Ultragas, fora o próprio, que pagava policiais e militares para poder assistir sessões de tortura (que deviam ser mais demoradas e espetaculosas ainda, para valer o dinheiro pago), foi sequer apontado como tal? Algum presidente militar, como aconteceu na Argentina, no Chile e no Uruguai, algum almirante, brigadeiro ou general de 04 estrelas foi julgado? Evidente que não! O brasileiro tem uma característica única no mundo, o “jeitinho”… os políticos, que estavam doidos para retomar o poder, aceitaram a aprovaram uma anistia geral e irrestrita, em que até os crimes contra a humanidade estavam perdoados.

A história que contei, de Francisca, em ‘Brasil Nunca Mais’ é real. Acho que jovens que vivem hoje a liberdade absoluta de se manifestarem pelas redes sociais, mas que não viveram aqueles tempos dolorosos, merecem ser alertados para o que significa uma ditadura, mas acho, também, que os meus contemporâneos, que viveram aquela época, não podem fingir que era tudo lindo, maravilhoso, só era ruim para quem fazia “alguma coisa errada”. Não é errado defender a liberdade, defender o direito de um povo se manifestar, de um povo ter acesso a direitos fundamentais, defender a igualdade de direitos. Estas são lutas que vem desde a pregação de Jesus Cristo na Galileia.

Bater no peito e dizer que “Graças a Deus” (ou “Alá é grande”) é, apenas, uma expressão comum que qualquer pessoa que crê costuma dizer, mas nada significa, porque Deus não tem nada a ver com isto. Afinal, ele disse que o homem tem o livre arbítrio… E cada um tem o direito de escolher a sua crença, a sua filosofia de vida, o seu caminho… O que eu não vou aceitar nunca – e continuarei escrevendo contra – é o cara aplaudir o cerceamento da liberdade e apoiar a tortura e morte de seres humanos porque ‘eles pretendiam’ implantar um sistema político com o qual ele não concorda! E ainda, berrar GRAÇAS A DEUS!

Em tempo: em setembro de 2013, num editorial eivado de sutilezas semânticas, as organizações Globo reconheceram que cometeram um erro ao apoiarem a ditadura dos militares. Mas, ainda levou 02 anos para demonstrarem isto do modo que ela melhor sabe fazer: transformando a ditadura numa zorra total. Não há melhor maneira de desconstruir  uma tragédia do que torná-la algo banal… e continuar dando as cartas!

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