De ‘ortoridades” e autoridades… (I)

Em meus 70 anos de vida, dos quais uns 55 politicamente ativos,  eu tive problemas com ‘ortoridades’ por três vezes. Em nenhuma delas houve prisão ou privação efetiva de liberdade, que seria traumático para mim, alguém que, sabendo da violência intrínseca destas ‘ortoridades’, tinha horror a qualquer tipo de violência física… Mas significaram constrangimentos absurdos para um ser humano que sempre seguiu as regras básicas estabelecidas pela sociedade em que vive e que, mesmo não sendo religioso, procurou obedecer os mandamentos da religião padrão do país.. Nem sempre consegui, mas… ninguém é perfeito!

A primeira ‘rusga’ com uma “ortoridade” foi nos primórdios dos anos 60. Eu participava de uma turma de jovens  que se reunia no início da Rua dos Goitacazes, em Belo Horizonte. Era uma turma pacífica que, nas noites de sextas ou sábados, se reunia na porta do edifício para conversar, tocar violão e namorar… Alguns, mais velhos – eu tinha uns 15/16 anos – compravam cerveja e nós, mais jovens, usufruíamos desta regalia.

Certo dia, já passava das 11 horas da noite, fazíamos uma seresta para minha namorada Góia, que morava no edifício (ela não descera para a portaria porque o pai, viajante, estava em casa, e ele não admitia namoro da filha), quando uma radiopatrulha chegou. Três policiais desceram e, balançando os cassetetes, foram diretos ao ponto: “Vamos parar com esta bagunça aí ou vai ter pau p’ra todo mundo!”  Bem… nós éramos uns doze jovens, alguns bem encervejados, e ‘contestamos’ a ordem policial, de modo até agressivo.

Três policiais armados contra doze jovens, alguns prenhes de adrenalina e álcool…! A coisa esquentou: um dos policiais sacou a arma e atirou, para cima, para baixo, nenhum em   nossa direção, acho… Foi uma correria geral! Além da  briga de rua que não houve, a ‘rusga’ com a Justiça se deu porque o pai de um dos jovens presentes era advogado e entrou na dita cuja contra a atitude do policial que deu tiros.

Houve inquérito, depoimentos, mas o assunto morreu nos escaninhos da Justiça, apesar de ter um prejudicado: Mário Lúcio, que tocava violão e piano, querendo que o porteiro abrisse a porta do edifício para que os mais jovens e as namoradas se refugiassem dos tiros, quebrou o vidro da portaria do prédio com o braço e teve um dos nervos arrebentado. Nenhum dos policiais sofreu qualquer punição ou advertência… nenhum dos jovens ficou com a ficha suja nos cadastros policiais… apenas uma lembrança traumática para o resto da vida!

A segunda rusga foi pouco depois, em plena ditadura, história que já contei aqui (O guarda da esquina): a diretoria do Estadual vetou uma apresentação do Milton Nascimento (o ainda desconhecido Bituca) no auditório do colégio, houve protestos, dois dirigentes do Diretório Estudantil foram presos, fizemos uma passeata até o DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), os policiais não gostaram e “apreenderam” mais 05, eu inclusive.

Os cinco escolhidos, três garotos e duas garotas, foram mantidos num corredor comprido, de pé e virados para a parede, à espera, segundo os guardas, de um delegado. Que nunca apareceu! Mas os guardas sabiam fazer bem o seu trabalho: cada vez que um andava pelo corredor, ia passando a mão na nossa bunda (e coxas ou peitos das meninas) ou dando cachuletas nas nossas orelhas ou coques na nossa cabeça. Todos fomos soltos umas 03 horas depois e, mais do que “agradinhos” e “lembrancinhas” dos policiais, a violência psicológica foi traumatizante.

A terceira rusga foi em Brasília, já separado da primeira mulher e longe das filhas.   Tradicionalmente às sextas feiras, a gente saía do trabalho e ia tomar chope no Moínho, no final da Asa Sul. Eu morava no Lago Norte e numa destas noites, voltando para casa no início da madrugada, muitos e muitos chopes tomados, na altura da Rodoviária, dei uma raspada na porta aberta de um carro que estava sendo empurrado por duas pessoas. Não ouvi o barulho, vi um cara gritando, pensei que fosse tentativa de assalto e não parei, saí fora.

Tempos depois, recebi uma intimação da polícia para responder a uma acusação de danos físicos a uma pessoa: o dono do carro alegava que, ao raspar a porta do carro aberto, eu o jogara na rua, provocando ferimentos ‘graves’. Na delegacia onde me apresentei obedientemente, uma ‘ortoridade’ não deve ter gostado do meu terno e gravata e da minha condição profissional (eu era chefe de gabinete da presidência de uma empresa estatal), me colocou sentado de frente e abaixo dele e, com uns papéis que ficava balançando na mão direita, como se fosse um cassetete, ia destilando acusações: “É muita irresponsabilidade do senhor (este senhor saía meio cuspido) sair de um barzinho dirigindo (nós investigamos…!), atropelar uma pessoa que tentava tirar seu carros avariado da pista e nem sequer olhar para trás… fugir velozmente do local sem prestar socorro à vítima!”

Confesso que se eu não estivesse acompanhado de uma advogada, eu teria saído correndo e me atirado debaixo do primeiro carro que passasse… Ela foi fria e profissional: “Desculpe-me, senhor delegado, estes papéis que o senhor balança tão compassadamente são relativos ao inquérito policial? É porque meu cliente, pessoa responsável e de conduta ilibada, está sendo acusado de um crime, mas nós ainda não tivermos acesso à acusação… O senhor poderia me emprestar estes papéis para eu dar uma lida?” O delgado afundou na cadeira, chamou um escrivão e mandou ele entregar uma pasta para a advogada. Ela pediu licença, folheou rapidamente os papéis, disse que precisaria de uma cópia e, virando-se para o delegado, sorriu: “Meu cliente cumpriu o solicitado, apresentou-se à delegacia e agora, como manda a lei, iremos contestar estas mentiras na Justiça! Com licença, doutor! (o doutor dela também saiu cuspido!)

Mais um bocado de tempo e o caso foi parar na Justiça, com todo aquele aparato teatral: acusado e seu advogado do lado de uma mesa, acusador e seu advogado do outro lado da mesa, o juiz numa mesa mais alta, ladeado pelo promotor e por uma secretária ou escrivã ou qualquer coisa parecida. No meu caso, era uma juíza…  E o julgamento foi rápido e objetivo: a acusação era tão surreal e desprovida de provas e testemunha (não existia nem exame de corpo de delito pós “crime”, provando lesões graves), que o próprio promotor achou um absurdo o Estado gastar tempo e recursos policiais e judiciários com aquilo. Ou seja: fui absolvido! (continua)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *