Todos por um (II)

Mas, para que cada um se sinta bem lembrado nesta sentida e saudosa rememoração, aqui vão algumas lembranças que podem ser contadas aos nossos netos:

# quando eu e Lúcia compramos a Chalueo original,  era um lote de 5.000 m² com uma casinha de sala, quarto, cozinha e banheiro, cercada por muito mato, onde apareciam algumas árvores frutíferas (que fomos descobrindo à medida que íamos limpando o terreno), entre as quais muitas jabuticabeiras. Detalhe importante: não tinha luz e a água vinha dum poço onde foi instalada uma bomba Análgea. Com o tempo e com a transformação da Chalueo em ponto de encontro da família, fomos instalando as comodidades: energia elétrica, poço artesiano, varandão, mesa de jogo e quartos para todo mundo, cozinha caipira e até uma piscina… Faltava um calçamento adequado da entrada da chácara até a porta da casa…

Chalueo, as beldades e  os bloquetes

Aguardei um feriado mais prolongado em que sabia que toda a família estaria reunida na Chalueo, e resolvi, matreiramente, aproveitar a mão de obra gratuita: comprei o material necessário para fazer um calçamento ‘bloquetado. Foi uma festa regada à cerveja e, mesmo assim, uma obra perfeita – que continua lá até hoje – para imensa satisfação de todos que nela trabalharam… Todos? Não! Um dos ‘mosqueteiros’ sentou-se no varandão em frente aos trabalhadores e, tomando suas cervejinhas geladas, só apreciava e dava palpites sobre o trabalho cansativo dos outros. Quando alguém indagava por que não estava lá junto, dando enxadadas, retirando terra, instalando bloquetes, respondia: “Cara, eu sou homem de escritório… Trabalho manual não é comigo!”

# na primeira grande viagem que fizemos juntos, de Brasília a Natal pelo interior, em dois Passats, dormimos a primeira noite em Seabra/BA e adiantamos bem o segundo trecho, entrando em Pernambuco ao anoitecer. Ao acender os faróis, o segundo Passat começou a apresentar problemas elétricos: os faróis não acendiam, mas a buzina tocava! Conseguimos chegar a Cabrobó e paramos num posto com hospedagem tão vagabunda, que resolvemos arriscar outra cidade melhor à frente, Salgueiro. A viagem noturna foi uma “loucura estafante”, com meu Passat de faróis altos ligados à frente e o outro, apagado, quase colado… cada vez que eu dava uma pisadela no freio (eu ainda enxergava relativamente bem, mas tinha horror a dirigir à noite), o motorista de trás enfiava a mão na buzina!

Castelinho e a ‘festa'(dos barõe da              maconha?)

Quase 70 km depois, por volta de 10 horas, entramos em Salgueiro, avistando um  Castelinho Palace Hotel todo iluminado… (havia uma festa lá, não sei se de inauguração do hotel ou comemoração dos barões da maconha do vale do São Francisco…). Doido para esfriar a cabeça, reduzir os batimentos cardíacos e umedecer a boca de cerveja, entrei direto no estacionamento e fui à portaria, vi se tinha apartamentos, nem olhei preço e peguei um ou dois. Os outros se aproximaram e um dos mosqueteiros, sempre “econômico” disse logo: “Muito caro! Não fico aqui não!” Mas ficou, porque ninguém quis acompanha-lo em busca de outro hotel. Quando ele voltou da busca, estávamos todos na piscina com dezenas de cervejas já emborcadas.

# na última grande viagem que fizemos juntos, de Brasília a Buenos Aires, fomos em dois carros também: minha visão já não merecia muita confiança e eu, mesmo a contragosto, aceitei ser apenas copiloto de um dos mosqueteiros. Evidentemente, já não eram simples Passats, eram carros de primeira linha, com todas as modernidades tecnológicas atuais. Primeira noite em Santo Antônio da Platina, no Paraná, segunda noite em Caxias, no Rio Grande do Sul e terceira noite em Chuí, na divisa com o Uruguai. Uma viagem perfeita, com meu piloto mosqueteiro dirigindo com maestria, cuidado e previdência, acompanhando os avisos do carro e parando na quilometragem adequada para reabastecimento.

`A noite, atravessamos a fronteira, conhecemos as zonas francas e, no dia seguinte, partimos para Montevidéo, com direito a almoço e passeio pela praia em Punta del Este. Acabamos saindo tarde para percorrer os 130 km até Montevidéo, na Ruta Interbalneária Liber Seregni, com intenso movimento e muitos pontos de pedágio, chegando à capital uruguaia já no entardecer. Entramos na Avenida de Las Americas e surpresa…! o carro estacou abruptamente! Descemos, abrimos o capô, mexemos aqui e ali (eu entendo tanto de carro quanto de cozinha, ou seja, nada!). Olhamos um para o outro interrogativamente… uma das mulheres gritou de dentro do carro: “É gasolina?” Era… Meu previdente mosqueteiro e seu diligente copiloto não haviam abastecido o carro no momento adequado.

Punta del Este e o ‘Hombre emergiendo a                              la vida’

Infelizmente, a vida tem mais curvas do que sonha nossa vã onisciência, e o tempo, sempre implacável, modifica nossos caminhos, muitas vezes contra nossa vontade: envelhecemos, as crianças cresceram, tomaram seus próprios caminhos, formaram suas próprias famílias, a Chalueo virou uma referência feliz na memória.  Eu, por problemas visuais e pessoais, limitei meus movimentos e me ‘distanciei’ fisicamente dos meus mosqueteiros, um distanciamento que se aprofundou quando Lúcia encontrou novos caminhos e nos separamos.

Bons tempos, quando as crianças                          obedeciam a gente…

Em parte destes 30 anos, nós nos reunimos, geralmente, em torno de um jogo de baralho que nós mesmos criamos e recriamos durante este tempo, o Millim, uma mistura de Pif Paf com Pôker, uma criação coletiva da qual participaram outros, como o pai da família e meu estranho amigo, já falecidos, o irmão mais novo, o primo-irmão e o filho mais velho deste, único descendente a abraçar, com vontade, o jogo que jogamos durante tardes e noites intermináveis.

Millim, ou “tenho uma regra nova…!”

Ou seja, a vida seguiu seu curso. E, por incrível que possa parecer, nenhum de nós, neste encontro, ficou relembrando o passado distante… Enquanto bebíamos  e beliscávamos alguns salgadinhos ou eles traçavam um escondidinho de carne que encontraram na geladeira, falamos sobre nossa vida atual, discutimos futebol e política, gozamos uns aos outros, elogiamos filhos e filhas, babamos os netos e nos alegramos por estarmos juntos mais uma vez, talvez pela última vez (como costumam dizer os imbecis, a vida é uma caixinha de surpresas!). E não jogamos Millim… Ninguém, aliás, sugeriu isto, provavelmente porque eu, visualmente inapto, não teria condições de enfrenta-los. E, como bons mosqueteiros, foram todos por um…

 

 

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