Deus sabe o que faz! Sabe mesmo?

Uma das vantagens colaterais de se morar numa área rural, mesmo que próxima do centro da cidade, é a disponibilidade que a gente encontra para exercer a solidariedade humana naturalmente, sem qualquer indução a isto pelos apelos televisivos, tão impositivos quando tragédias se abatem sobre determinadas regiões do país ou do mundo.

A solidariedade aqui é mais simples, direta e sincera: levar o caseiro do vizinho, que está viajando, para comprar um produto na agropecuária, para socorrer um bezerro desmamado, portar um abafador e ajudar a apagar o incêndio que ameaça uma chácara, enquanto os bombeiros não chegam, ou a mais simples e corriqueira delas, dar carona aos que esperam ônibus nos pontos, vez que, numa região destas, transporte público não é uma prioridade de governos.

Normalmente, os caroneiros são gente simples, trabalhadores e prestadores de serviços que tentam voltar para casa após uma empreita, mulheres com filhos pequenos que vieram se consultar no postinho de saúde, ginasianos que perderam o ônibus e ainda tentam chegar na escola a tempo.

Semana passada, saindo de casa para ir ao Plano Piloto, dei carona para uma senhora de uns 45 anos e sua filha, aparentando uns 14, que estavam no ponto de ônibus em frente à única escola da minha região. A mulher já entrou no carro pedindo desculpas e agradecendo a Deus pela minha bondade em parar para leva-las até o balão do Colorado, onde elas pegariam uma condução, já que demoraram  para ser atendidas na escola, sem ter conseguido o que queriam, e acabaram perdendo o ônibus para Sobradinho.

Perguntei em que não tinham sido atendidas na escola e a mulher, bem falante, foi direta: “minha filha sempre estudou aqui na escola, mas não veio às aulas nos últimos três meses do ano. Cancelaram a matrícula dela e agora não tem mais vaga pra ela repetir o ano aqui… Vou ver se a gente acha em Sobradinho!”

Pensei em especular  um pouco e saber porque a filha parara de ir às aulas: elas não carregavam um bebê, uma razão forte numa região rural para jovens pararem de frequentar a escola, mas antes de fazer qualquer pergunta, a mulher esclareceu: “Morei 20 anos na rua 16 e me separei ano passado porque meu ex se engraçou por uma sirigaita que foi trabalhar na chácara vizinha. Saí de casa com minhas duas meninas, aluguei um barraco lá na rua 18 e ‘tô’ gostando muito… a vizinhança é muito boa, tudo gente amiga. Mas o aluguel é pesado… 500 reais! E a pequena aí teve que trabalhar também pra gente pagar as contas…”

Gostei da conversa e comecei a escarafunchar um pouco mais (perdoem-me o interesse, mas eu fui jornalista e tento ser escritor!): “Desculpe-me, dona, mas com duas filhas, você saiu de casa e deixou o caminho livre para seu marido e a sirigaita?’ “Não, dotô… o verme me dá 01 salário mínimo pra sustentar esta filha aqui, que é “de menor”… a outra trabalha no comércio e eu trabalho de faxina ou qualquer outra coisa que aparecer… Eu conheço muita gente aqui e há sempre alguém que me conhece e me indica pra faxinar ou pra cuidar da horta ou até pra capinar… Trabalho não mete medo em ninguém!”

Esqueceu-se de mim, virou-se para a filha e continuou  falando: “Preciso arrumar umas duas faxinas esta semana, Dica… Se não tiver estes remédios da sua irmã no posto de Sobradinho, vou ter que comprar… E o dinheiro ‘tá curto. Esta sacanagem de você não poder trabalhar, vai bagunçar um pouco a vida da gente…”

A filha, no banco de trás do carro, resmungou qualquer coisa e a mulher, voltando-se de novo para mim, foi clara: “Ela parou de ir pra Escola porque eu arrumei um trabalho pra ela na chácara do sêo Otávio. A atual mulher dele é meio machona, não dá moleza, mas a menina até que ‘tava’ indo bem, cuidando da casa toda… Aí alguém disse pra ela que era crime botar empregada de menor, e a Dica dançou! Eu comecei a trabalhar com 10 anos na roça, nunca tive carteira, sei que ‘tá’ errado, mas vai se fazer o quê? Esse sêo Otávio mesmo… minha outra filha começou a trabalhar lá com 16 anos e só saiu porque arrumou um trabalho no comércio, salário base, mas com carteira. A primeira mulher do sêo Otávio nunca ligou pra isto, nunca nem perguntou a idade da Leleca.”

Eu também nunca aceitei empregar menor de idade para trabalhar em casa – a lei diz que empregada doméstica tem que ser maior – mas reconheço que, num país como o Brasil, isto acaba trazendo enormes sacrifícios para grande parte do povo, que tem muita dificuldade de sobreviver com os baixos salários recebidos. R$1.700,00/mês para um casal com dois ou três filhos some em aluguel, condução e… alguma comida!

Estava meio perdido com minhas próprias conjecturas, quando ouvi a voz da menina pela primeira vez: “Não me conformo, mãe! Aquela mulher não tinha o direito de cancelar minha vaga. Ela só fez isto porque tem raiva de mim. Já pensou ter que estudar em Sobradinho? Que merda também!”

“Lava esta boca, menina! Você não está em casa, não! – Desculpa, seu moço – Pior é se não tiver mais vaga em lugar nenhum! Você quer ficar bronca que nem eu? Olha’í sua irmã: com metade do 2° grau já tem carteira assinada trabalhando no comércio…! E por quê ela tem raiva de você? O que você aprontou pra ela ficar com raiva de você? Não tem vaga lá porque Deus assim quis! E se Deus quiser, vai ter em Sobradinho… Deus sabe o que faz! Nã é mesmo, dotô?” Eu não disse nada… sou mais Zé Ramalho!

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