O encontro de Deus com dois diabos (I)

Deu-se que os dois morreram no mesmo dia, 04 de julho de 2021. Questionado porque no dia da Independência dos Estados Unidos e não no dia 07 de setembro, dia da Independência do Brasil, Deus deu de ombros e murmurou:

– É auto-explicativo… os mais ricos vêm sempre em primeiro lugar.

– Mas Jesus disse que era mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Céu…

– Meu filho era um sonhador! Acreditava na Justiça, na Bondade e no Amor… E morreu crucificado, não é?

Bem, o fato concreto é que Jair… ou melhor, Donald John Trump, 45° presidente dos Estados Unidos, e Jair Messias Bolsonaro, o 36° mandatário do Brasil (o Brasil já teve tanto vice, presidente de Câmara ou do Suprmeo, e tanto milico como presidente, que não tem como seguir o padrão numérico americano) morreram no mesmo dia e, como é praxe na tradição celestial, chegaram ao Purgatório na mesma temporada de recolhimento das almas penadas, ou seja, ao mesmo tempo. (Uma explicação necessária: almas penadas são aqueles indivíduos que ou não aceitam a própria morte ou, pela certeza de que Deus não os perdoará, se recusam a desencarnar. Imateriais, ficam rodando uns tempos em volta da família e dos amigos e até do cachorro, clamando, surdamente, por clemência, até que os Anjos da Morte passam o rodo e puxam todas para o Purgatório).

Como era óbvio, Donald e Jair não tiveram que passar pelos trâmites normais das almas e foram levados diretamente para a fila preferencial, aquela em frente ao salão onde o próprio Deus distribuía as sentenças, após um interrogatório perfunctório, que podia durar minutos ou horas, dependendo do humor de Deus e dos crimes, maldades (ou bondades), explicações e, claro, da lábia da alma. A fila não era longa e, em pouco tempo – sinal que Deus não estava de muita conversa – eles estavam à espera do chamado, Donald sempre à frente de Jair.

Jair queria dizer alguma coisa, mas estava emocionado demais. “Deus! – pensava – como o Senhor é bom pra mim! Trazer-me à Sua Presença junto com Ele? Perdão… com ele! Ele é só para o Senhor!” E deu um olhar tão envolvente para Donald que este virou-se pra ele e comentou:

– Don’t worry, guy! Who is God in front of me? Jair teve uma síncope e desabou no chão, de lá respondendo com as únicas palavras que sabia em inglês:

-I love you, Mr. Trump!. Um anjo mensageiro, passando pelo local, ajudou-o a se recompor, dizendo-lhe baixinho:                 – Recomponha-se. O Senhor detesta que almas se apresentem a Ele de gatinhas…!

Então, a voz troou lá de dentro:

– Próximo! Donald empinou o queixo, empurrou o portão com as duas mãos e entrou, quase marchando. E o anjo sussurrou:

– Ih! Ele não gosta disto também não… E não gostava mesmo. Quase despachou Donald direto pro Inferno, sem qualquer conversa, mas se segurou. Ali estava uma alma complexa, alguém provavelmente cuspido e escarrado pelo próprio Lúcifer, e que, obviamente, cumprira com indiscutível determinação as ordens recebidas. Fora bem além, até. Ele precisava estudar, perscrutar aquela alma doentia e, quem sabe, extrair algum laivo de bondade ou arrependimento, mínimo que fosse, que lhe permitisse manda-la pro Purgatório e, ali, trabalha-la com calma até transformá-la… Seria uma grande vitória contra Satanás!

Fez um gesto despretensioso mandando-o aproximar-se e sentar-se num dos degraus do trono de nuvens. Donald caminhou até Ele e chegou ao degrau mais próximo do Senhor e manteve-se de pé, sempre com o queixo levantado… Levou um tabefe no meio da cara e rolou até o primeiro degrau, ouvindo o vozeirão:

– Ponha-se no seu lugar, verme! Nem no seu país você manda mais… E garanto que se eu te chutar pro Inferno, seu Mestre vai te fritar em azeite fervente como qualquer alma que vai para lá (Ele sabia que não era verdade, mas ameaças costumam funcionar com valentões boquirrotos).

Donald baixou a cabeça e murchou um pouco. E Deus também suavizou a voz:

– Quem é você, Donald John? Surpreso, Donald tartamudeou:

– Eu sou o Presidente… E a voz cortou, rispidamente:

– Era! E não foi isto que perguntei, Donald John. Eu não perguntei: Quem é você, Trump?

– Well, eu sou um típico nova-iorquino, um legítimo americano…

-Legítimo é forçar a barra, Donald… Sua mãe era escocesa e seus avós paternos eram germânicos – Deus é onipotente, onisciente e onipresente, sabe tudo, não se esqueçam.

– Well, sempre tive um tino comercial muito desenvolvido e, por isto, me tornei um magnata dos negócios imobiliários e, com 22 anos já estava a caminho de ganhar meu primeiro milhão de dólares…

– Está esquecendo um detalhe, aliás dois, Donald… Seu pai já era bilionário quando você se formou e foi trabalhar com ele. Daí, apoiado nele e por ele e neste seu tino avassalador, pisando em quem estivesse na frente, seu irmão mais velho, inclusive, você chegou aos seus muitos milhões…

– Well, mas eu expandi os negócios de meu pai… construí a Trump Tower, aquele monumento em Nova Iorque, comprei uma companhia aérea, entrei no ramo de cassinos de Atlantic City

– E expandiu tanto que faliu!. … (continua 4ª feira)

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