Diário de tempos mortos* – 08/10/2020 (continuação do dia 06)

É assim que eu sou, acho… (II)

Por fim, também não sou comunista. Eu li Lênin, o Manifesto Comunista, Trotsky, Bakunin e Marx na juventude, em minhas constantes temporadas pela biblioteca de meu pai. Bem como li Tolstoi, Dostoiévsky,  Górki, Gogol e Maiakóvski, o que me permitiu compreender a importância da Revolução Bolchevique para uma população camponesa miserável, dominada tanto por uma classe de famílias nobres privilegiadas, quanto por uma cultura religiosa extremamente conservadora, o que tornava a Rússia quase que uma sociedade escravocrata em pleno século XX.

Mas muitas outras leituras e, principalmente, a própria vivência diária com outros seres humanos, me permitiu compreender que os seres humanos, com raras exceções, não aceitam viver em uma sociedade igualitária, sem pátria ou classes sociais, onde as propriedades e os meios de produção pertençam a todos, que é a essência do comunismo. O homem (e a mulher) são gregários sim, mas não coletivos: egoísta nato, cada um quer o seu pirão, e se este pirão for pouco, ele quer o seu primeiro.

Nos tempos que hoje correm nesse meu Brasil varonil, que um dia já foi um mulato inzoneiro, e hoje não passa de um branquelo trapaceiro, nesse meu Brasil radicalizado, em que se você não é de um lado, tem que ser do outro e, quando você insiste que não é de um lado nem de outro, você se torna um pária ou, na linguagem atual, num isentão que não tem coragem de ser alguma coisa, eu me pergunto: como vou me situar, para esclarecer àqueles que me leem e seguem, convencendo-os a continuarem me lendo e seguindo?

Uma amiga com quem andei dividindo estas angústias outro dia, foi taxativa: “Não esclareça! Aquilo que você escreve é bem claro… o que você pensa, como você age, quem é você… Quem te lê e continua seguindo é porque  pensa como você ou não pensa e quer contrapor argumentos pra te convencer que você está errado.” Ela deve ter razão, claro, mas eu tenho dúvidas. Eu sempre tive algumas certezas na vida, na política, na religião, na moral, nos costumes… mas depois que comecei a participar das redes sociais, Twitter e Whats’App em especial, minhas convicções sobre os ser humano brasileiro (e em geral) ficaram bastante abaladas.

Eu sempre vi o brasileiro como um povo alegre, solidário, pacífico, mas acomodado e passivo e, por isto, pouco disposto à violência grupal – bem diferente da violência individual, muito comum em todas as classes, principalmente do homem, que tem uma necessidade atávica de se mostrar macho, e acha que berrar, dar socos e pontapés, mostrar o dedo e exigir obediência de mulheres e filhos é prova de masculinidade. Todas as vezes que os brasileiros agiram como massa – durante minha vida consciente, pelo menos – foi por influência, política e financeira, de grupos econômicos poderosos: a agitação pós atentado da rua Tonelero, que levou Vargas ao suicídio, as Marchas com Deus contra o comunismo, que derrubaram Jango, os caras pintadas, que fizeram Collor renunciar, as passeatas de 2013, que resultaram nos protestos verde-amarelos seguintes e redundaram no impeachment de Dilma (muito significativa, aliás, a música em inglês do vídeo do MBL, financiado, segundo o The Guardian, pelos irmãos Koch, bilionários americanos).

A ameaça de fome que rondou 58% da população brasileira (60 milhões de famílias que receberam auxílio emergencial nesta pandemia), o desemprego que atinge 14 milhões de pessoas aptas ao trabalho, os mais de 25 mil moradores de rua e o déficit de moradias da ordem de 8 milhões de unidades, a necessidade de enfrentar filas constantes nos serviços públicos ofertados pelo governo, seja em prontos-socorros, seja no INSS, seja numa Defensoria Pública, enquanto parlamentares, juízes, militares e tecno-burocratas gozam de penduricalhos remuneratórios que os livra destas chateações da vida comum, nada disso agita a passividade e o conformismo do povo brasileiro. “Deus quis assim e Ele sabe o que faz”, costuma dizer ele, quando confrontado com tal realidade.

E é exatamente por isto que faço as críticas que geraram reclamações de alguns leitores meus: independente de minhas convicções políticas ou do meu agnosticismo, eu não me conformo com esta submissão secular – intermediada antigamente pelos padres católicos e atualmente pelos pastores evangélicos – do ser humano que, simplesmente, entrega a um Deus  Todo Poderoso a responsabilidade de conduzir a sua própria vida. Apesar de alguns retrocessos pós João XXIII, a Igreja de Roma evoluiu bastante neste campo, especialmente agregando muito dos conceitos e pregações da Teologia da Libertação, que liberaram um pouco os fiéis da extrema dependência de Deus. E, talvez por isto, a Teologia da Prosperidade assumiu a responsabilidade de conduzir o rebanho à moda antiga, com uma peculiaridade especial: na versão antiga, a Igreja de Deus enriquecia e negociava seu poder… na versão moderna, os pastores enriquecem e assumem o poder.

Não entra na minha cabeça que pessoas dotadas de cérebro, que trabalham, têm amigos com quem conversam e trocam ideias, assistem televisão, participam de grupos em redes sociais, consigam acreditar que estão sendo abençoadas por Cristo, através dos dízimos e oferendas que fazem a pastores como Marco Feliciano ou Valdemiro Santiago ou Silas Malafaia, que ficaram milionários vendendo ilusões baratas… Como seres humanos que se dizem iluminados por Deus podem se permitir serem enganados assim e se dizerem felizes?

Acreditar na virgindade de uma mãe ou na Torre de Babel ou nas cornetas de Josué derrubando as muralhas de Jericó, vá lá, é uma questão de fé… mas não há fé que faça o feijão ungido curar alguém contaminado por coronavírus ou que permita que a semente do aluguel doado facilite a compra da casa própria. E se a fé é tão forte assim, porque o pastor precisa da senha do cartão do fiel para sacar o dinheiro doado por ele? A realidade brasileira, porém, é esta: pastores que vendem a ideia de que ninguém tem que esperar chegar ao Céu para comer o néctar dos deuses, e que basta fazer uma pequena oferta ao seu pastor, que estará ofertando diretamente a Deus, estão conquistando as almas e as riquezas do país e de seus cidadãos.

E, muito além do agnosticismo, do papismo, do catolicismo apostólico ou do sócio-capitalismo nórdico que eu possa professar, eu sou jornalista… e de uma época em que Jornalismo era coisa séria, sem estrelismo. Como tal, minha função é observar, tentar descobrir o que está por trás de uma ocorrência, de uma história, de uma atitude e conta-la, criticamente ou ironicamente para quem me lê e segue. É assim que eu fui a vida toda! E continuo sendo…

Agora, quando a roda da minha vida já dá suas últimas voltas, às vezes me pego pensando se eu não devia ter sido menos rígido com algumas certezas… Podia ter sido um bom político, podia ter ficado rico, podia ter me dado mais a minhas mulheres e filhas, podia ter me cercado de amigos… É fácil, agora, imaginar as tantas coisas que eu podia ter feito e não fiz por não contemporizar com minhas certezas absolutas, mas, como disse Fernando Pessoa, navegar é preciso, viver não é preciso… e viver ao sabor da vida não é coisa pra pessoas comuns como eu, é só pra gênios…

 

 

 

*Retomo um hábito da minha juventude: escrever um diário, que nunca mostrei pra ninguém (porque diários eram escritos apenas pelas meninas) e que, infelizmente, se perdeu entre as muitas mudanças que fiz pela vida.  Naqueles anos sombrios, o diário era político (outra razão para permanecer oculto), hoje não o será necessariamente, pois a esta altura da vida, não tenho motivos para mentir nem mesmo para mim próprio. E também, não será necessariamente diário…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *