A estupidez de um povo (I)

O coronavírus tornou-se realidade no Brasil, ao que tudo indica, em março, quando um brasileiro chegado da Itália apresentou os sintomas de uma virose que vinha matando muito italiano. A coisa era tão distante da gente que eu me recusei a desmarcar uma viagem pros Estados Unidos, para encontrar filhas e netos. Mesmo acreditando na ciência, mesmo obedecendo prescrições médicas (meu pai era médico) e mesmo sendo um cara que fazia questão de se manter bem informado, eu pensava que a nova ameaça sanitária, tão longínqua na China e na Itália, assim como o ebola ou o sars ou a zika, tinha alcance limitado, fosse geográfico, fosse humano.

O primeiro choque de realidade foi na própria viagem: eu e minha caçula chegamos a Nova Iorque numa quarta-feira, dia 11 de março. E Nova Iorque ainda não era, mas já caminhava pra ser o epicentro da pandemia no mundo, suplantando a Itália. No dia seguinte, com entradas compradas antes pra assistir o Fantasma da Ópera na Brodway, o teatro foi fechado – antecipando uma decisão do prefeito da cidade de fechar a cidade, algo que não acontecera nem quando o Bin Laden mandou dois aviões se jogarem nas Torres Gêmeas.

O segundo choque foi na volta apressada pro Brasil, via Cidade do Panamá. Assim como eu, dezenas de brasileiros em viagem, apavorados com as notícias de fechamento de fronteiras e suspensão geral de voos, trataram de cancelar sonhos e roteiros e voltar pro Brasil. O aeroporto estava entupido de gente, brasileiros em sua imensa maioria. Só para cá saíram 05 voos nas 02 horas que fiquei lá: pra Salvador, pra São Paulo, pro Rio de Janeiro e pra Montevidéo, com escala em Porto Alegre, e o meu, pra Brasília.

Ninguém usava máscara, ninguém mantinha 1,5 metro de distância, já que a OMS ainda não fizera qualquer recomendação explícita a respeito, e todo mundo reclamava, não do risco da doença que os obrigara a mudar de planos, mas das rigorosas medidas protetivas tomadas pelas autoridades das cidades americanas onde elas estavam. O horror da situação na Lombardia italiana, mostrada diariamente na televisão ainda não fora absorvido por aquela multidão de gente chateada apenas com seu próprio transtorno. Quando comentei com um casal mais velho de Goiânia que o nosso risco era maior do que dos outros, a mulher disse, simplesmente: “Isso aí ‘tá muito longe… não chega no Brasil não!”

Pois chegou! E, em 06 meses, já contaminou mais de 04 milhões e matou mais de 126 mil brasileiros. E vai contaminar e matar mais, pois a estupidez do povo e de suas lideranças é marca registrada de um país que até em seu glorioso hino faz questão de manter sua predestinação histórica: ficar deitado eternamente em berço esplêndido. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, sabia o que dizia e fazia.

Para os mais jovens, que vêm a vida globalizada através das telinhas de notebooks e smartphones e nunca dispõem de tempo pra entendê-la através de aventuras literárias, Macunaíma é um personagem de Mário de Andrade, cuja história foi publicada em 1928. Muitos e muitos anos depois (1969) virou filme, com Grande Otelo, Paulo José e Dina Sfat, que sintetizou, com precisão, a essência do livro: um retrato do brasileiro médio, sua forma de viver e compreender a vida, geralmente preguiçoso, interesseiro, cagão, pouco confiável e, principalmente, libertino.

Eu sei que há exceções (eu mesmo me considero uma), mas no geral, assim como o Capitão América é o grande herói dos americanos, Macunaíma é o grande herói do Brasil, a começar pelo fato de que a imensa maioria dos brasileiros nunca ouviu falar dele. Mas age como ele. E a pandemia do coronavírus tem mostrado isto com propriedade incontestável. Não só pelo estúpido negacionismo do presidente da República e de seus apoiadores, como pelo comportamento irresponsável de grande parte da população. (termina quinta-feira)

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