Os 04 cavaleiros da porca Alice (3ª temporada)

A queda de um mito – Capítulo final

Keirôssinho me pegou na taberna quando tomava meu café da manhã. Trazia um cavalo preto pra mim, mas eu dispensei e preferi cavalgar minha própria égua malhada, menor, obediente a mim e mais ágil, caso eu precisasse fugir de repente… E eu precisaria com certeza. Depois de um esforço inicial, saindo da aldeia, atravessando a ponte e embicando para as montanhas, sem qualquer conversa, refreei a égua até Keyrôssinho reduzir a marcha do cavalo dele e se emparelhar comigo. Eu queria, claro, puxar conversa.

– Roniléssis é um grande chefe… e extremamente leal. Na situação que Zirouziro se encontra, muita gente já está virando a cara pra ele e seu amigo, ao contrário, está saindo de casa pra ir dar-lhe apoio e proteção… Se ganharem a parada, duvido muito que Ronilessis retorne pra cá… e você assume o lugar dele por aqui…

– O senhor acha mesmo? Está escrito nas estrelas?

– Ainda não li as estrelas pra você… mas, se você quiser, na primeira parada eu faço isto. Mas não preciso ler as estrelas pra saber que se… eu disse se… Zirouziro vencer os inimigos, vai querer seu leal guardião do lado dele, e que você é o homem de confiança do Ronilessis nestas paragens, não é mesmo?

– Mas você não sabe se Zirouziro vai ganhar a parada e se você ler nas estrelas que eu vou ser o chefe dos mosquetianos por aqui, é porque ele vai derrubar seus inimigos, não é verdade? – O brutamontes não era tão burro quanto fazia parecer. E eu teria que conduzir a conversa com mais cuidado do que imaginei a princípio. Felizmente, ele ficou ansioso pra saber seu futuro, resolveu apressar o passo do cavalo pra chegar rápido na fazenda do Lucihangus, um dos poderosos comerciantes da região, apoiador e financiador de Zirouziro. Ele estava na capital, claro, mas o capataz da fazenda era mosquetiano e sabia a posição de Keirôssinho no grupo.

Enquanto esperávamos as empregadas prepararem uma lauta matula que iríamos levar – a jornada ainda seria longa – arrumamos um lugar sossegado para eu ler o futuro de Keyrôssinho. Repeti a encenação da mesa da taberna, joguei as pedras sobre uma mesa de pedra improvisada e aumentei o suspense dando voltas em torno da pedra e falando palavras desconexas. Os dois mosquetianos não entendiam bulhufas do que eu murmurava, mas não perdiam um movimento meu, enquanto davam grandes talagadas de vinho num garrafão que o capataz trouxera com ele.

-Roniléssis não chegou na capital ainda… – Os dois me olharam furiosos, como se eu estivesse mentindo…

– Não é possível! Eles saíram muito cedo… iam chegar no fim da tarde de ontem!

– Houve enfrentamento no caminho, os mosquetiamos não conseguiram ultrapassar Serra Dourada.

– Enfrentamento? Quem enfrentou Roniléssis?

– O quadro está muito confuso ainda, vou ter que esperar a noite pra conversar com as estrelas… Mas acho melhor a gente apressar o passo e cumprir as ordens de Ronilessis, não é mesmo?

O capataz foi apressar as empregadas enquanto nós encilhávamos as montarias. E só paramos novamente numa antiga casa de fazenda abandonada, no sopé da montanha e à frente de uma mata fechada que, me pareceu, seria o nosso destino final.

– Algum lugar especial pro senhor falar com as estrelas? Logo elas estarão brilhando e há um caminho atrás da fazenda que leva pra uma pequena elevação antes das montanhas… Quer que eu o leve pra lá agora mesmo ou depois que escurecer?

– Me mostre o caminho que eu vou sozinho… Estrelas só falam com ledores de estrelas e elas não gostam de estranhos por perto…

Ele me levou até uma trilha, uma leve subida até um pequeno platô com uma ampla vista para o céu do entardecer. Voltamos para a casa da fazenda, Keirôssinho foi buscar umas lenhas que vira no caminho pra acender a lareira, enquanto eu abria a matula e separava pão com pedaços de carne e uma garrafa de hidromel pra levar comigo. A noite desceu rápido, peguei uma acha na lareira e fui pro platô, carregando umas cobertas. A ideia era dormir por lá e aumentar a angústia do braço direito de Ronilessis. Dormi como um anjo…

Quando deu pra perceber a trilha, ao amanhecer, voltei pra fazenda. Minha cara fechada e preocupada dizia tudo: – Ronilessis não passou e os mosquetianos estão cercados numa volta do Rio do Ouro. Há muito mortos…

– Eu tenho que reunir o pessoal que ficou e ir furar o cerco…

– Não! Nós temos que cumprir as ordens de Ronilessis. Se ele for preso, você sabe o que vai acontecer… Ele vai acabar confessando os crimes e indicando onde encontrar as provas. Ninguém resiste à tortura! Nós temos que esconder as provas num lugar que nem ele saberá indicar, mesmo que morra. E, sem provas, você e os que ficaram por aqui não serão presos e poderão, até, reagir depois… – Keyrôssinho balançou a cabeça em dúvida. O instinto de lealdade dizia que ele tinha que tentar socorrer os amigos em perigo, mas o instinto de sobrevivência era mais forte… e meus argumentos realistas.

Duas horas depois, floresta adentro, chegamos numa pequena clareira. Num lado havia um riacho apedregado

E do outro um jatobá centenário, cujas grossas raízes, à flor da terra, eram cobertas, num ponto, por grandes pedras retiradas do riacho. Sem minha compreensível ajuda, Keyrôssinho retirou as pedras do lugar e começou a cavar por entre as raízes. Quando apareceu a primeira caveira, dei o alarme: – Keyrôssinho, ‘tá vindo gente… Ele ficou meio paralisado enquanto eu corria pra minha égua, montava e enveredava pelo outro lado dos ruídos.

Enquanto meus parceiros do CAD/SS que eu mandara vir para Ibirapitanga, cercavam Keyrôssinho que, surpreso, ficou sem reação, dois deles galoparam atrás de mim e me encontraram um pouco além. Fingimos que havia uma luta, dei gritos lancinantes e eles voltaram para a clareira, explicando aos demais que eu resistira e fora morto. Keyrôssinho tentou reagir, então, mas já estava amarrado. O chefe do grupo sentou-se perto dele e, enquanto os demais iam desenterrando alguns cadáveres e armas da cova, falou-lhe mansamente:

– Com isto tudo aí, o Conselho vai, com certeza, te entregar para os parentes das vítimas para fazerem justiça… Vai ser horrível! A não ser que você resolva abrir o bico… Prisão por uns tempos, uma fuga arranjada e a vida noutra região… acho que vale a pena, não?

Como eu disse, Keyrôssinho era mais inteligente do que fazia parecer. E sabia tudo de Ronilessis, de Zirouziro e do clã, como o Conselho dos Bem Nascidos ficou sabendo logo que ele foi levado pra capital, enquanto eu ia viajar por uns tempos, longe da região. Mesmo protegido por Ronilessis, que chegara à capital sem qualquer dificuldade, o Mito logo seria desmistificado e preso, talvez morto pelos próprios mosquetianos, ou pelos aldeãos que tanto o endeusaram!  (fim da série… Ou não?)

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