Os 04 cavaleiros da porca Alice (2ª temporada)

O poder de um mito – 3º capítulo

No dia seguinte, ao entrar na taberna para o desjejum, encontrei Magalhássil ansioso pra conversar. Comi uma fruta – as goiabas da aldeia eram famosas – e levei o taberneiro pro ‘escritório’.

– Quer dizer que Zirouziro arrematou a Alice… Que cara de sorte!

– Sorte porcaria nenhuma! Depois da comemoração geral na praça, todo mundo na expectativa do próprio Zirouziro passar o facão na Alice, e ele jogar um balde de água fria na cabeça de todo mundo com a tal história de sagrar os 04 Cavaleiros da porca Alice, a decepção foi geral. Já estava começando a virar bagunça, grupinhos querendo brigar e coisa e tal, quando ele prometeu a churrascada pro dia seguinte e o povão se acalmou. Quando, no outro dia logo cedo, o povo soube que Zirouziro tinha voltado pra capital, muita gente foi falar mal dele lá na taverna. E aí eu descobri que o bingo foi combinado pra ele ganhar…

-Como isto foi possível?

– Quem promove a festa do padroeiro é a Comissão Gestora da aldeia e, exatamente pra evitar rolos entre fazendeiros e desconfianças entre os aldeões, ela sempre contrata um cara de fora pra comandar o bingo. Desta vez, trouxeram um cara famoso indicado pelo Jodorius, porque o Wilwizius já tinha montado uma jogada política com ele, o primeiro pro Conselho dos Bem Nascidos e o segundo pra Comissão Gestora de Ibirapitanga. Claro que ninguém sabia disto e nem que o bingueiro já vinha ‘comprado’ pelo Jodorius.

– E como a porca foi ganha pelo Zirouziro?

– Fácil! Ninguém supera os Toscanaros em seus métodos de convencimento. Os mosquetianos não são muito visíveis, mas todo aldeão que preza sua vida e a de sua família sabe o poder que eles têm. O bingueiro não é diferente… é famoso, mora na capital, mas sua família é de uma aldeia dominada pelos mosquetianos. Mais do que os safanões e petelecos e o facão apontado pro saco, bastou o Ronilessis, um chefe mosquetiano falar que conhecia muito o pai e a mãe dele e que achava a irmã mais nova dele muito bonita, pro bingueiro mudar de lado sem cobrar nada.

– Mas isto é sempre feito na surdina, sem ninguém ver… nunca vão provar que o Zirouziro “comprou’ o bingo.

– Não sei não… Não houve muito tempo pra “comprar” o bingueiro. Ele veio da capital e ficou hospedado na fazenda do Wilwizius, só saindo de lá direto pra quermesse. Eles tiveram que acochambar ele nalgum canto na praça mesmo. O marido da prima de uma comadre da minha mulher me disse, na taverna, feliz da vida, que o Zirouthree e o Ronilessis, mais uns três, cercaram o bingueiro no balcão de uma barraca e, como se estivessem tomando umas bebidas, foram curtos e grossos com ele. O cara escutou tudo. Disse que viu até o bingueiro mijar nas calças…

– Feliz da vida?

– Sim, ele é muito ligado aos Toscanaros, vive dizendo que é Deus no céu e Zirouziro na terra…

– Eu preciso conversar com este sujeito…

– Com o marido da prima da comadre da minha mulher, o Helióssis? Por quê?

– Seu enrosco com Zirouziro começou nele… no momento em que ele te contou algo que não podia ser contado. Eu tenho que desamarrar o nó. Você me avisa quando ele estiver na taberna ou, então, fala pra ele vir se consultar comigo… que você me achou um grande ledor de estrelas.

Depois do taberneiro, meu cômodo ficou pequeno pra tanta gente a me procurar, e não apenas aldeãs e aldeões… gente fina também vinha, meio na moita, mas vinha. Em pouco tempo, eu sabia mais da vida da aldeia e das fazendas ao redor que o próprio taberneiro. E acho que talvez soubesse mais da vida de Zirouziro até do que seus próprios filhos. Mas, para o foco do meu farejamento, que era o que interessava a Judgemorus, faltava o principal, a prova documental, fossem as pedras falsas do bingo, fosse o testemunho do bingueiro, que estava sumido desde o final do bingo.

De qualquer modo, fiz um relatório sucinto da vida pregressa de Zirouziro e pedi empenho do CAD/SS pra tentar localizar o bingueiro, vez que ele morava na capital. O próprio portador retornou com uma recomendação expressa de Judgemorus: faça um relatório substancial da vida de Zirouziro. Nós queremos saber exatamente como ele chegou ao Conselho dos Bem Nascidos e qual o papel de figuras tradicionais, velhas raposas da região, em sua escalada. Não esqueça de verificar o seu enriquecimento e de seu clã…

Pedi a Magalhássil que avisasse à clientela que eu ia fazer um retiro rápido nas montanhas, pra retomar contato com as estrelas, e fui passar uns dias no próprio ninho de cobras, a fazenda dos Tosconaros. Um farejador experiente como eu sabe que o melhor local pra se confirmar verdades sobre alguém é participar do seu cotidiano. Zirouziro não estaria presente, mas Ziroutwo, que diziam ser seu filho preferido e seus empregados estariam, e seus amigos de velhos e novos tempos sempre apareciam por lá, pra saberem novidades e receberem instruções, via Ziroutwo.

Pensei em ficar uma semana, mas em 03 dias tinha liquidado o assunto. Ziroutwo, chamado pelos íntimos de Zirroutruxo, tinha compulsão em falar do pai, e para ele, tudo que o pai fazia era fantástico, heroico e a coisa mais correta a ser feita, mesmo que provocasse a destruição de uma floresta inteira ou a prisão e morte de todos os membros de uma família, pelo fato do pai ter se insurgido contra uma decisão dele, imposta ao Conselho. E, seguindo o patrãozinho, os peões da fazenda também não tinham papas na língua pra falar dos feitos do patrãozão…  Ou seja: todos os malfeitos de Zirouziro eram cantados em verso e prosa, sendo muito fácil comprová-los: bastava falar “Óh! Não acredito!” quando Zirouthruxo ou algum peão contava uma safadeza de Zirouziro, pra eles apresentarem as provas, muitas documentais…

Havia muita patacoada no meio das histórias, todas elas comentadas em rodinhas sociais na capital, vez que foram espalhadas pelos roboqueiros contratados por Zirouthruxo, com o objetivo de criar uma aura de super herói amedrontador de Zirouziro, que o tornava, para a plebe, alguém inatingível pelas leis. Mas havia crimes reais, como o assassinato, por mosquetianos amigos, de uma representante na Comissão Gestora de Ibirapitanga, a primeira mulher que exercia este ofício em toda a região.

Fiz um relatório listando cada uma das “impropriedades” reais, aumentadas e fantasiadas ou não, e informei que eu iria aprofundar e tentar levantar provas em relação ao assassinato, mas que precisava de um reforço de caixa  significativo do CAD/SS, bem como de algum armamento extra, pois teria que molhar as mãos de muita gente, bem como teria que rodar por várias fazendas e aldeias, muitas delas dominadas por mosquetianos ligados ao clã Toscanaro. Meu emissário voltou logo, com todos os meus pedidos atendidos e um bilhete, sem assinatura, do próprio Judgemorus: Aja rápido e seja implacável! E tente achar Keyróssil, que sumiu daqui.

O farejamento foi intenso. Rodei por fazendas e aldeias, conversei com Deus e todo mundo. Zirouziro era adorado, com devoção, por muitos, mas muitos também demonstravam uma adoração baseada no medo. Pairava, acima da ‘mitologia’  de Zirouziro, a ameaça dos mosquetianos, capazes de qualquer coisa, inclusive torturar e matar em plena luz do dia, para manter o poder do Mito e, por consequência, o deles próprios. Juntei muita coisa útil, capaz de derrubar Zirouziro, mas tinha dúvidas se o Conselho dos Bem Nascidos conseguiria enfrentar  os mosquetianos. Até que encontrei Keyróssil. (fim da 2ª temporada)

 

 

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