Dasdô e o auxílio emergencial (II)

Minha mãe sempre detestou cozinha, teve doméstica em casa até meu pai morrer, mas, como mulher dos velhos tempos, sempre soube cozinhar. Dasdô, apesar das aulas da tia, continuava xucra, um tanto ou quanto bruta na vassoura, na enceradeira, no aspirador e até no espanador. Na máquina de lavar não, porque a primeira coisa que a nova patroa ensinou-a foi ligar a máquina, separar as roupas, esperar encher de água e aí, ir colocando as roupas dentro da máquina, que faria o resto até desligar. Daí, era tirar uma a uma e pendurar no varal.  Nos demais serviços, foram várias semanas de um curso intensivo – minha mãe era neurótica com limpeza, conseguia enxergar até farelo de pão no rodapé da cozinha e, neste quesito, era implacável.

E davam-se muito bem as duas. Dasdô quase não falava, escutava tudo, uma, duas, cinco vezes… De cabeça baixa estava, sem olhar pra patroa, de cabeça baixa ficava. E seguia as ordens ao pé da letra. E a patroa não perdia a paciência. Mostrava como queria que ela fizesse e mostrava de novo e de novo, até ficar do seu jeito. Com o tempo, Dasdô aprendeu tudo, se adaptou ao sistema patronal e minha mãe resolveu partir pra outro ensinamento: cozinhar. À esta altura, Dasdô já levantava os olhos pra ouvir a patroa, já conversava um pouco e até já contava sobre sua vida pregressa e sobre seus filhos vivendo com a avó na Paraíba e sua vontade, um dia, de voltar pra Paraíba.

Foi nesta época, também, que ela arranjou um consolo pras suas partes baixas sempre quentes: um vizinho dos tios, viúvo sem filhos e uns 10 anos mais velho que ela. Com o consentimento dos tios, mudou-se pra casinha dele na chácara vizinha. E passou a demonstrar maior interesse ainda nas aulas de culinária de minha mãe. E, segundo esta me disse então, Dasdô tinha jeito pra coisa: aprendia rápido e, até, alterava receitas com bons resultados.

Por circunstâncias da vida, ela acabou saindo da casa de minha mãe, para onde voltou poucos anos depois. Estava bem mudada: trabalhava bem e tinha consciência disto, não se acanhava de conversar, e até sabia impor sua maneira de agir no trabalho. E estava no terceiro marido (ela fazia questão de dizer “meu marido”), um homem mais jovem, bem aparentado, bom de conversa e pouco dado a trabalhos pesados, vivendo de bicos. Moravam numa chácara cujo dono só estava interessado em manter alguém nela para vigiá-la. Ou seja: não recebiam salário e pagavam a luz consumida, mas não precisavam cuidar da chácara.

Num dia de mais prosa, ela contou pra minha mãe porque mudara de marido: o “velho” era muito ciumento e isto acabou atrapalhando o serviço dela. Além de leva-la e busca-la em toda as casas em que ela ia trabalhar, ele ligava pro seu celular de hora em hora pra perguntar qualquer coisa ou dizer qualquer coisa sem importância. E ai dela se não atendesse!

Mas o caldo entornou mesmo quando ela conseguiu trazer sua filha mais velha pra morar com eles. O “velho” não gostou, era mais uma boca pra sustentar (como se isto não fosse feito por ela) e passou a destratar a menina, que detestou morar com a mãe e acabou voltando pra Souza. Por lá casou, lhe deu um neto e estava esperando o segundo. Quanto a ela, juntou suas coisas e voltou pra casa do tio, que mandou avisar pro “velho” desaparecer da frente dele, senão levava tiro.

Minha mãe me contou esta história e fez uma observação interessante: “O gozado é que, apesar de continuar eficiente em seu trabalho, Dasdô passa a maior parte do tempo agarrada no celular, na maioria das vezes falando com o marido… E usa o celular pra tudo: se eu pergunto se ela sabe fazer um bolo de alguma coisa diferente, ela diz que não, mas vai olhar no celular e tirar a receita… E faz o bolo sem qualquer problema.

Aliás, foi o celular que me fez reencontrá-la por estes dias. Ela e seu celular apareceram lá em casa me pedindo ajuda. Ela e o marido precisavam se cadastrar, como autônomos que eram, no Auxílio Emergencial do governo, por causa do coronavírus. Eles conseguiram baixar o aplicativo da Caixa, mas eram tantos passos a serem dados pra chegar ao cadastro, que eles se perdiam no caminho.

Consegui chegar ao fim depois de algum tempo e ela me garantiu que acompanhara tudo e saberia fazer o cadastramento do marido. E me disse, satisfeita, que este dinheiro ia permitir que ela viajasse pra Paraíba, pra rever a avó bem velhinha, conhecer o neto e, talvez, ajudar a filha a lhe dar a primeira neta. E eu alertei: “Mas você não vai poder viajar agora não, Dasdô. O vírus ainda está solto por aí…” E ela, me encarando desafiadora: “E eu lá tenho medo disso? Eu sou do Sertão, sêo Leo, se não morri até hoje das tantas pragas e mazelas da vida, é porque Nossa Senhora, Mãe de Deus, zela por mim!

PS: Desta vez, Nossa Senhora relaxou… O cadastro de Dasdô e de seu marido continuam sob análise do Ministério da Cidadania. Sem previsão de pagamento da 1ª parcela…  (fim)

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