Eu e Deus (III)

O anjo de túnica azul reapareceu e me levou para uma pequena fila em frente a saleta de Deus. Enfim, eu O veria… mas acreditaria Nele? Quando fui chamado e entrei na sala, não O vi. A intensa luminosidade não permitia ver nada… apenas sentir! Senti uma pressão nas costas e flutuei até ficar prostrado numa escadaria de nuvem. Eu via a nuvem, via os degraus e apenas a luz acima da minha cabeça. Havia uma música compassada que, de repente, tornou-se tonitroante, ao tempo que luzes e nuvens coloridas flutuavam no alto.

Bem impressionado, ouvi a Voz:

– Entendeu agora porque nem você nem ninguém nunca me vê, ô… – a voz era suave, mas aquele ô no final me deu a nítida impressão que Ele ia dizer “ô merdinha…” ou “ô verme…”

– Me custa crer… Senhor! Não quero ser insolente, mas acho que Seus mensageiros, seus profetas, seus pastores e padres não souberam transmitir bem Sua imagem entre os mortais. Ainda pequeno, o Senhor me foi apresentado como um velho bem velho, de longas barbas e cabelos brancos, de cenho franzido e boca fechada, lançando raios sobre a Terra, como se estivesse com raiva de Si e de todo mundo…

– E você acha que se eu fosse apresentado aos humanos como um avozinho de óculos e bengala, um Papai  Noel de roupa azul e branca  e bochechas vermelhas, dando risadas ah! ah! ah!, os mortais iriam se prostrar ao chão ou pedir pra sentar no meu colo? Depois de 72 anos de vida terrena, você acha que o amor é mais poderoso que o ódio? Acha mesmo?

– Não… Não acho! Mas isto é culpa da criatura ou de seu Criador? – A voz calou-se por um tempo, enquanto eu pensava com meus botões, que já não existiam mais: “Será que eu exagerei?” Parece que não, pois a voz voltou, menos suave um pouco, mas disposta a um debate:

– Qual sua definição de culpa?

– Antes de expulsar Adão e Eva do Paraíso, o Senhor não lhes perguntou se eles estavam arrependidos por terem comido o fruto proibido. Não! Eles desobedeceram uma ordem direta do Todo Poderoso, algo inadmissível para o Criador. A culpa que, provavelmente, eles sentiam, não teve oportunidade de ser redimida. Ao contrário: o Senhor os mandou penar na terra, que passou a ser o lugar dos pecadores para sempre. E que desculpa o Senhor se deu para justificar esta falha? O livre arbítrio. Não é atoa que o ser humano em geral tem uma frase feita para todos os sofrimentos que passa em sua vida: “Foi Deus quem quis!”

– Quer dizer que, na sua opinião, se eu tivesse dado a chance de Adão e Eva se sentirem culpados, eles reconheceriam o erro cometido e se tornariam obedientes ao Criador?

– Com ou sem livre arbítrio? – A voz deu um suspiro profundo e eu pensei: “Lá vou eu pros cafundós do Judas…” – Mas ela voltou mais relaxada. Me pareceu que além de não gostar de contestações ou enganações, como me alertara São Francisco, Deus apreciava um bom debate de ideias e posturas…

– Você quer dizer que eu criei o homem não só igual à minha imagem e semelhança, mas igual aos meus pensamentos? E meus pensamentos não são de amor mas de ódio?

– Todas as Suas interferências no mundo terreno são de ódio, exceto, desculpe-me a crueza humana, a transada com a Virgem Maria. O Dilúvio, a Torre de Babel, as 07 pragas do Egito, os 40 anos dos hebreus no deserto, a destruição de Sodoma e Gomorra, a crucificação de Seu filho, Jesus Cristo… Que exemplo o Senhor queria que os humanos tivessem? Cristo, Seu filho, a personificação do bem, do amor, da paz entre os humanos, foi torturado e morto em nome de quê? Da glória de Deus?

– Eu sou o Criador! Não fosse Eu e vocês não existiriam?

– Quem disse? E o Big Bang? E a evolução das espécies? Eu insisto: se – e eu disse se –  o Senhor não tivesse expulso Adão e Eva do Paraíso, dando-lhes o direito de escolha, algo que o Senhor não lhes ensinou o que era, certamente suas criaturas iriam amá-lo e obedecê-lo por toda a eternidade. Mas não… Sua intenção foi punir suas criaturas por algo que o Senhor mesmo as dotou: a liberdade de experimentar, a curiosidade, a faculdade de contestar. Na primeira oportunidade, tomem porrada! E o Criador tornou-se o Senhor do Medo: menino, não faça isto, que Papai do Céu na gosta! Menina, comporte-se, que Deus está olhando! Senhora, reze muito para que Nosso Senhor perdoe tua traição…!

Desta vez, o suspiro foi mais profundo e ruidoso. E lá vou eu – pensei. Não fui… Voltei! O suspiro era meu mesmo, voltando do AVC que tivera… e que não fora fatal! Ou fora, e Deus resolvera me mandar de volta para sofrer a solidão dos mal amados e, por isto, incrédulos, por mais algum tempo. Do meu ponto de vista, foi ótimo. Viver, mesmo sofrendo, é um eterno aprendizado e, quem sabe?, talvez eu aprenda a crer e compreender Deus. E daí, consiga vê-lo em nosso futuro encontro. Enquanto isto, obrigado, meu Deus, que a vida está aí pra ser vivida! (fim… até minha próxima morte)

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