Eu e Deus (II)

O gongo não soou, uma possibilidade que eu não descrevera. E um anjo de túnica azul me levou diretamente para São Francisco de Assis, o protetor dos pobres e dos animais. O Todo Poderoso, pensei, resolveu brincar comigo… Sem demora, lá estava eu sobrevoando um campo verdejante, povoado por fêmeas de animais, ovelhas, vacas, éguas, gatas, cadelas, galinhas, ‘pavoas’ e de muitas outras espécimes.

Qual o significado disto? Nunca fui um garanhão… sempre dei mais valor às mulheres do que aos machistas com quem convivi durante anos… anos, aliás, em que nem existiam feministas, a ponto de Simone de Beauvoir ser execrada e tachada de machona, mesmo ou talvez por seu casamento aberto com Sartre… O anjo me prostrou diante do santo e de sua irmã em Cristo, Santa Clara, e sussurrou: “Agora, é contigo!”

Eu nunca fui, em vida, um rebelde ou radical. Na época em que jovens amigos meus pegavam em armas pra defender uma utópica democracia, eu achava e contradizia que a violência – pegar em armas e resistir contra um poder muito mais armado e espumando ódio era romântico, mas inútil – não iria resolver po..a* nenhuma. Como, efetivamente, não resolveu. Depois de muitas prisões, torturas e mortes, os grandões se reuniram, acharam que o povão estava insatisfeito e meio agitado, e isto era perigoso e mataram a rebeldia latente promulgando uma Constituição Cidadã que, diziam, iria livrar o Brasil de continuar sendo a mosca do cocô do cavalo do bandido.

Do mesmo modo, eu nunca fui, em vida, um amigo íntimo de animais, domésticos ou não. Tive uma gata preta de olhos verdes, Kalu, na infância, um pequinês, Stampirosnopoulos, e uma pintagol sem nome na meninice, um vira lata, Muxum, pra vigiar a chácara na maturidade, e outra gata marrom-acinzentada de olhos azuis, Blue, na velhice, adotada pela minha caçula, além de galinhas, patos e gansos que, na chácara, conviviam, certamente, com ratos do mato, gambás e saruês.  Minha única bondade nesta seara foi salvar calangos caçados pela Blue.

E, pra finalizar, nunca fui rico o suficiente pra abandonar uma vida faustosa pra me dedicar à pobreza, como São Francisco ou Santa Clara… Então, por que diabos eu fora encaminhado à presença deles?  Pecados eu cometi, claro, os mais graves talvez com minhas famílias, por ser tão distante, pouco presente, nada amoroso… Mas fosse isto, deveria estar na presença de São José, ora!

Francisco me olhou meio desconfiado, mas Clara foi mais objetiva: “A filha de uma filha sua não se chama Clara?” “Mas eu não tenho nada a ver com isto – respondi – foi escolha dos pais… Eu nunca interferi na vida das filhas… As primeiras porque achava que poderia atrapalhar a criação que a mãe estava dando, e todas porque eu sempre defendi a ideia de que as pessoas precisam receber as informações necessárias para decidirem o rumo de suas vidas. Eu posso dar algumas destas informações, mas a maioria virá da própria vivência de cada uma.  Eu sou agnóstico e de esquerda… Gostaria que minhas filhas também o fossem, mas nunca iria impor-lhes isto.

– Os filhos, no seu caso as filhas, muitas vezes, redimem os pais, sabia? Mas você não veio parar aqui por isto. Mesmo não acreditando em Deus, você passou sua vida defendendo e respeitando todas as pessoas e, como eu e Francisco, dando valor e  defendendo as menos afortunadas, mesmo que elas se mostrassem indignas deste respeito e defesa. Mesmo sem demonstrações efusivas ou à distância, como você reconhece, amedrontada, eu diria, o que era uma fraqueza, você sempre amou o próximo. Nosso Senhor não consegue entender esta capacidade humana, uma criação Sua, de entender e relevar nos outros, suas próprias fraquezas. Onisciente e onipotente, Ele acha que Suas criaturas também deveriam ser, pelo menos, onipotentes.

– A senhora quer dizer que Deus tem preferências e não gosta de sofredores? De chorões? De desistentes e indiferentes?

– Não! Deus não gosta de seres humanos fracos, que são fracos por si e pelos outros, que passam a vida clamando pela presença de Deus para resolver qualquer problema, seja fome, desemprego ou briga com vizinho. Deus não gosta de pessoas vaidosas, esnobes, injustas, que só enxergam o próprio umbigo e que têm uma falsa compaixão pela miséria humana…

– Continuo sem saber por que vim parar aqui… E continuo sem ver Deus… Ele existe?

– Você acha que foi parar aonde depois do AVC? Num hospício, com um monte de gente fantasiada de branco e malucos se fazendo passar por santos? – São Francisco interveio na conversa – Você está na ante sala do Além, meu caro, e só a mão divina poderia construir isto aqui. E você veio conversar conosco porque Deus queria ter certeza que você não foi uma fraude em sua vida física… apenas um covarde que se escondeu atrás de uma timidez crônica  para não se envolver profundamente com a vida, sua e dos outros…

– Pra ser sincero, na mocidade eu acho que fui sim. Atrás dos livros e dos óculos, eu dava conselhos, às vezes idiotas, mas não me envolvia… se seguissem, era problema de quem os pediu. Depois, não. Continuei muito avesso à intimidades, mas a casca que criei como auto defesa me deu coragem pra enfrentar os desafios, não ter tanto medo de cometer erros, corrigir alguns até, e lutar por aquilo em que eu acreditava.

– É esta nossa impressão – enquanto Francisco falava, Clara balançava positivamente a cabeça – e eu acho que Deus poderá querer te ver agora. Está preparado para aceitá-lo ou confrontá-lo? Ao contrário de Jesus Cristo e da Virgem Maria, que relativizam tudo o que os seres humanos fizeram em vida, Deus é direto e não gosta muito de confrontos ou contestações, mas detesta mais ainda as tentativas de humanos, mesmo depois de mortos, de enganá-Lo. Seja sincero, pois, e vá com Deus.

A hora chegara e, não sei por que, me lembrei da primeira vez que, já garoto, chorei, sozinho, no meu quarto: meu pai, que não era muito disto, havia comprado uma coleção de discos clássicos, e colocou um bolachão na vitrola pra minha mãe, que gostava de tocar piano, ouvir. Era o Noturno nº 9 de Chopin… Minha sensibilidade explodiu e eu tive que correr pro quarto. O choro, se é que alma chora, desceu livre e sacudido de novo! (termina sexta-feira)

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *