Deus e o diabo no céu da Terra (V/V)

5. O Mito, quem diria?, virou cocô!

                Como foi escrito, os rebeldes dos preferenciais iam para outra sala, que ficava abaixo da sala do trono de nuvens de Deus. O escorregador era a porta de entrada desta sala e cabia a São Pedro empurrar suavemente as almas que chegavam até ali, de modo que elas sentissem o tamanho da escuridão para onde elas estavam sendo escorregando. Além de se borrarem toda, nenhuma delas, ao que se saiba, chegava ao final imprecando ou sequer resmungando. Ou chegavam desmaiadas de pavor ou agarradas a todos os santos possíveis, vez que sabiam que fora a mão de Deus que as empurrara para lá.

No entanto, ao chegarem, se deparavam com um palco intensamente iluminado com apenas dois móveis, uma imensa távola redonda e um trono de ouro, por onde rodavam várias câmeras de tevê, e um gigantesco auditório, uma extensão subterrânea do Purgatório, em que se apinhavam as almas lá recém chegadas e cuja primeira prova era justamente julgar os candidatos a Deus que se apresentavam no palco.

Ainda atordoado pela luminosidade, o presidente foi carregado por dois anjos com túnicas marrons e acomodado na távola redonda. Aos poucos, foi percebendo o ambiente: a távola ocupava todo o palco de frente para o auditório, e nela estavam acomodadas várias figuras estáticas… apenas a boca mexia, repetindo uma mesma frase que ele não conseguiu decifrar porque as mais próximas dele falavam línguas que ele não distinguia. Pensou, de imediato, que eram bonecos de barro com algum tipo de articulação na mandíbula mas, por mais que apurasse os ouvidos, não entendia o que diziam.

Não tinha a menor ideia de quem eram as figuras mais próximas dele mas, olhando com mais atenção algumas mais distantes, pareceu ver Hitler, Mussolini, Stalin, Mao Tse Tung, Stroesner e até um de seus ídolos, Pinochet… Sorriu e fez um aceno, mas a figura não correspondeu, permaneceu estática, apenas a boca se mexendo.

Nesta hora, o auditório se agitou! Havia surgido o mestre de cerimônias, nada mais nada menos que o velho Chacrinha, sua pança e sua buzina, a berrar: “Terezinha! Terezinha! Vocês querem bacalhau?” Alô! Alô, Dona Chiquita… Como vai sua piriquita?” Aí deu duas buzinadas e as almas todas se acalmaram, aguardando, ansiosas, o início do show, que era bem simples: o recém-chegado tinha que se apresentar ao auditório e explicar a razão de sua presença ali. O auditório, então, indicaria seu destino.

O presidente começou a se levantar e, neste momento, ouviu um pequeno coro vindo do lado direito do auditório: Mitô! Mitô! Mitô! Virou-se para lá e vislumbrou dona Damares com seu crucifixo na mão, cercada por um pequeno grupo de virginais donzelas – pela idade, era evidente que tinham morrido como ativas participantes do programa de abstinência sexual da ministra – todas venerando o grande ídolo.

Animado, empinou o corpo e fez uma saudação quase nazista para suas fãs, circulou o olhar por todo o auditório,  baixou a mão com força sobre a távola e perorou:

– Estão vendo este grupo coeso a gritar Mitô! Mitô! Mitô! Pois eu sou o Mitô, um rebelado capitão do poderoso Exército brasileiro que veio do baixo clero do Congresso e conquistou o coração de 58 milhões de brasileiros cansados da corrupção dos políticos e poderosos da Pátria. Eu sou o Mitô, um homem simples tornado Deus por seus concidadãos por suas convicções, por sua inteireza moral, por seus princípios cristãos. Eu sou o Mitô, um homem predestinado por Deus para derrotar o comunismo pagão no Brasil! Eu sou o Mitô, o  representante do Todo Poderoso na Terra com a missão de retomá-la das mãos do diabo e repovoá-la, novamente, com os cordeiros de Deus… Mas, mesmo sendo um mito, não sei porque Deus me chamou aqui. Aliás, que Deus é este que interrompe uma missão divina…?

Chacrinha cortou o microfone e postou-se à sua frente, gritando pro auditório: “Olá, dona Raimunda, como vai… Vai bem?” A algazarra explodiu e ele deu duas buzinadas: “É hora de julgar, minhas macacas. E julgamento é coisa séria! Botou uma toga preta sobre a roupa de palhaço e perguntou: “Ele falou? Ele se explicou? Ele se confessou? Ele se comunicou? Sim? Não? Então, ele vai para o trono ou não vai?” O auditório, inclusive o grupinho de dona Damares, berrou, numa só voz: “Vai! Vai! Vai!”

Os mesmos anjos de bata marrom pegaram o presidente pelos sovacos e levaram-no para uma porta lateral ao trono de ouro. Entraram num ‘closet’ e lá deram-lhe um banho caprichado, vestiram-lhe a farda de capitão, incluso o quepe, trespassaram-lhe a faixa de presidente do Brasil e o colocaram sobre uma plataforma que começou a mover-se, elevando-o até a frente do trono. Intensamente ovacionado pelo auditório, o Mito começou a acenar para suas novas seguidoras que, em resposta, batiam pés e mãos, berrando: “Senta! Senta! Senta!” Ele sentou-se rindo gostosamente e, imediatamente, ouviu, logo acima de sua cabeça, o som de uma descarga. E uma enxurrada de bosta divina se derramou sobre ele que, em segundos, ficou petrificado, como todas as figuras sentadas na távola redonda. Foi prontamente levado para ela e encaixado entre o general Videla e o Papa Doc. Sua boca repetia uma única frase: “Sou um bosta! Sou um bosta! Sou um bosta!”

Deus levantou-se do trono de nuvens e verificou que ainda havia duas almas na fila. Que foram introduzidas juntas na sala. Não houve diálogo. Deus olhou as duas e traduziu seu olhar: “Enganar as pessoas prometendo um lugar no Céu ou segurança contra violências praticadas por seus próprios comparsas e ameaçar humanos com o inferno ou com uma 09 milímetros têm o mesmo efeito…

Foram mandadas direto pro Inferno!

Cansado e com a consciência do dever cumprido por mais um dia, Deus ia se retirar quando viu o filho do presidente sentado no mesmo degrau da escada do trono onde Ele o havia colocado, e do mesmo jeito: de olhos cerrados e com as mãos pressionando as têmporas. Aproximou-se e disse, o mais suavemente possível: “Você atendeu, com presteza e lealdade, os desígnios de Deus. Por isso, vou lhe dar a chance que seu pai não lhe deu. E passando por cima outra vez de sua própria determinação, devolveu-o à Terra e à vida.

No dia seguinte, ele foi visto rodando uma bolsinha vermelha na Ipiranga com avenida São João. (fim)

 

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