Deus e o diabo no céu da terra (III/V)

3. O Juízo de Garantias e a Justiça de Deus    

            Embarcadas as almas no metrô de dois vagões, Jesus caminhava pelo corredor de um e Nossa Senhora pelo do outro. Perscrutando a alma de cada passageiro, ambos dialogavam mentalmente com uma ou outra e, assim, penetravam no âmago de cada uma, extraindo todos os interesses, anseios e desejos recônditos daquela alma. Entre os dois vagões, Jesus e sua mãe indicavam as almas perscrutadas em cada vagão e, em havendo dúvidas da decisão tomada para cada uma, o processo se repetia, desta vez com Jesus passando pelo vagão da mãe e Maria pelo vagão do filho.  Ou seja: antes do metrô chegar no Purgatório, boa parte das almas tinha encontrado seu destino final, o Céu ou o Inferno e, para eles eram carreadas diretamente. E não adiantava tentar segurar na mão de Deus, que o destino estava definido.

De vez em quando dava bode. Mãe e filho não se entendiam e não havia alguém para dirimir o perrengue. São José, como pai de mentirinha, se sentia incompetente e todos sabiam da teimosia de Deus em relação ao livre arbítrio dos seres humanos, imaginem em relação aos seus próximos. Isto causava alguns problemas sérios: o metrô se atrasava, as passageiras ficavam irritadas e indóceis, Caronte tinha até que parar num ermo qualquer e justificar a demora por causa de algum erro técnico. Nenhuma alma via ou ouvia Jesus e Maria discutindo em voz alta, mas a briga era boa! Como mães e filhos costumam fazer…

Eles acabavam chegando a um acordo e a viagem prosseguia. Houve apenas um caso em que Deus teve que passar por cima de suas próprias recomendações e intervir diretamente, em nome da harmonia do lar. Foi exatamente no transporte das 286 almas desencarnadas durante a operação de restabelecimento da ordem no aeroporto, rodoviária e estradas de Brasília, na chamada “Batalha do Meteoro Assassino”.

Como os seres humanos  foram mortos inesperadamente e em consequência de atos violentos de outros seres humanos, se bem que fardados e comandados por um general, parte das almas, após os trâmites legais do Grande Vestíbulo, estavam sendo encaminhadas para o Purgatório. Na 2ª leva, uma turma que havia tumultuado o saguão do aeroporto, estava a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Brasil, que se abstivera da honra de permanecer ao lado do presidente e optara por orar fervorosamente em Goiânia, na certeza que Jesus ouviria suas preces e se postaria numa grande goiabeira existente na prainha do Paranoá, impedindo qualquer cataclisma em Brasília.

Nossa Senhora apreciava dona Damares. Achava meio debilóide aquelas palestras sobre os perigos plantados pelo diabo em histórias infantis, como se crianças pudessem mudar de gênero porque adoravam Frozen, e riu muito com aquela visão que ela teve do filho numa goiabeira… se ainda fosse uma tamareira ou oliveira até que podia ter acontecido, mas goiabeira? Jesus tinha horror ao bicho da goiaba, desde que mastigara um quando ainda era bebê. Mas gostava de sua postura em defesa da abstinência sexual até o casamento… A marca da virgindade em toda a sua existência ainda era muito angustiante para ela.

Já Jesus abominava dona Damares. E não só pela goiabeira… Ele ainda se lembrava dela de sua última escapada para a Terra, quando, por pirraça do Pai, tinha certeza,  fora cair exatamente ao lado de uma goiabeira no terreiro da casa dela. O que ele detestava nela e em tantos outros cristãos que, de bíblia na mão, pregavam em salões, esquinas e praças, era a facilidade com que distorciam as palavras dele, Jesus, bem como as do Pai, para adequá-las aos seus próprios interesses. E dona Damares sempre fora mestra nesta arte.  Com o objetivo de aumentar o rebanho de sua igreja, espalhando-o por todo o país, pregou incansavelmente contra o Estado laico, que estava expulsando Deus das escolas e da alma das crianças.

Como não houve acordo possível, Deus retirou dona Damares do metrô e levou-a diretamente para o Purgatório, para onde ela ia mesmo, mas sem mais depender do Juízo de Garantias. E prometeu-se nunca mais se meter, porque mãe e filho ficaram dias sem falar com Ele. Já houvera outros casos de discordância no Juízo de Garantias, mas neles quem conseguia encontrar um meio termo era São Pedro, que tinha certa ascendência sobre Jesus Cristo desde que ele, para afrontar São José, lhe disse que não aceitava conselhos dele, só do Pai, e São José não dera mais qualquer pio na vida do filho (?), e sobre Maria, desde que ele passara a acompanhar o filho e velar por ele, em suas andanças pela Galiléia e entorno.

A atitude tomada por Deus neste caso nunca tinha acontecido. Deus era muito cioso de suas próprias ordens e determinações e, desde que contratara uma consultoria ‘amerhumana’ para organizar o Grande Vestíbulo, padronizando os sistemas de entrada e saída das almas, nunca interferira nas atividades, devidamente manualizadas, de anjos verificadores, santos e do Juízo de Garantias.

No estafante trabalho de recepção diária de almas descarnadas, sua função era sentar-se no grande trono de nuvens instalado na Sala de Julgamento das Almas Preferenciais (a salinha menor do Grande Vestíbulo), para onde estas eram chamadas, uma a uma, para o Juízo Final, um encontro inesquecível com o destino eterno, definido diretamente por Deus, após uma longa conversa de pai pra filho ou filha.

O roteiro não tinha surpresas: uma voz tonitruante gritava de dentro da sala: “Próximo!” e a primeira alma da fila de preferenciais adentrava para um lugar intensamente iluminado, a própria luz divina. Não dava para se enxergar nada além da luz, até que a mão de Deus puxava a alma para uma escada aos pés do trono, onde ela se quedava em reverência. Nunca ninguém soube o teor das conversas travadas entre Deus e uma alma. Sabe-se, apenas, o resultado: 99% delas foram parar diretamente no Inferno, o que me permite dizer que, tantos e tantos séculos depois, o Deus do dilúvio e da destruição de Sodoma e Gomorra continua pulsando firme e forte em Seu coração.

Dizem à boca pequena as almas viventes no Céu, em recatados piqueniques pelos bosques e pradarias, que uma única alma foi poupada do Inferno pela justiça divina, ou seja, saiu da salinha e foi pro Céu: John Lennon. O disque disque não é muito plausível, mas tem bom embasamento histórico: dizem que Lennon, um notório pacifista assassinado por um fã  inconformado, desencarnou como preferencial e, portanto, foi alvo da justiça divina. Frente ao trono de Deus, Este percebeu a genuína paz interior que emanava de sua alma, apesar do corpo ter sido contestador, pregador e disseminador do amor livre e da liberdade individual dos seres humanos terem fé ou não e consumirem drogas ou não. E achou que o melhor inferno de Lennon seria ir viver no tédio do Céu, onde entenderia de vez que Jesus, seu filho, era muito mais popular que os Beatles. De fato, os shows promovidos por Lennon nos Rock’in Raios Celestes, mesmo com a presença de George e de convidados como Sinatra, Elvis, Jobim, Raul ou Janis, e mesmo lotados, tinham menos gente que as palestras ou cursos de coaching de Jesus Cristo. (termina amanhã)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *