Conto da passagem

Eu já falei sobre isto repetidas vezes: gostei muito de viajar e, mais ainda, de carro… dirigindo meu próprio carro, de preferência. E, por isto, durante uns 40 anos, desde que tirei carteira de motorista, aos 20, eu viajei muito, desde a primeira grande aventura, num fusquinha, que não era meu, de Belo Horizonte ao Uruguai, até a última, para minha última aventura, na Chapada dos Veadeiros, sentado no banco de trás do carro de minha filha…

São milhares de quilômetros rodados sem qualquer acidente, mesmo ‘carcando’ o acelerador em alguns retões irresistíveis (como é doce a sensação de liberdade!), e com pouquíssimos contratempos mecânicos – um pneu furado numa cratera aqui, um engasgo de carburador ali, por causa de gasolina batizada, um problema no injetor de combustível acolá – que nos obrigou a ficar em Sobral, no Ceará, por 05 horas, mas nos permitiu tomar banho de piscina de noite no imenso calor de Terezina. Os imprevistos têm, sempre, suas compensações…

Mas hoje é passagem de ano e só vale lembrar as passagens passadas em viagem, ainda no caminho, em locais inesperados, comemorando um novo ano com gente desconhecida, mas que não teve qualquer receio ou constrangimento de abraçar, beijar, dançar, numa alegria espontânea e tão difícil de se encontrar no dia a dia das grandes cidades.

Desde 1971, quando ouvi pela primeira vez “Happy Xmas (War is Over)”, uma canção de Lennon contra a guerra do Vietnam que, depois, virou uma das canções de natal/ano novo, mais executadas no mundo, que eu imaginei passagens de ano confraternizando com pessoas estranhas, diferentes, numa prova de que viver em paz e sem ódio é possível. Realizei isto algumas vezes. E vou relembrar duas, para manter acesa minha esperança na humanidade.

Isto aconteceu, por exemplo, na última grande viagem que fiz, infelizmente sem dirigir, de Brasília a Montevidèo, de novo (e Buenos Aires, de barco), em três carros. Eu, dois cunhados e um amigo e parte das respectivas famílias  saímos de Brasília dia 27/12 e fomos passar o ano na capital uruguaia. Que não comemora o novo ano com a mesma explosão de alegria que nós, brasileiros, talvez por não terem uma vida tão dificultosa quanto a nossa.

Nós saímos de Chuí, atravessamos a fronteira, paramos em Punta del Diablo e almoçamos em Punta del Este, quase uma colônia brasileira no Uruguai e demos outra parada na Casapueblo, do multiartista Vilaró. Chegamos ao entardecer e, numa das principais avenidas de Montevidéo, a caminho do hotel, o carro teve pane seca. No hotel reservado, o Los Angeles, um hotel tradicional com uns 200 anos de vida, tapetes felpudos imensos pelos corredores e ante-salas, um elevador do século 19, com um saculejo amedrontador, um cheiro de fantasmas nos salões e nos quartos…

Banhados, descansados e curiosos, preparamos o ‘reveillon’: onde? Só nós, no próprio hotel, que não tinna nada especial para a data? Na praia próxima, semi-escura e totalmente diferente de uma Copacabana brasileira? No centro velho da cidade, onde estávamos, que não tinha qualquer programação prevista? Acabamos num boteco perto do hotel, com mesas espalhadas pela calçada, ocupadas, em boa parte, por estrangeiros como nós, que viram os clarões e ouviram, ao longe, o espocar de alguns fogos, no centro novo da cidade. Mas a alegria dos companheiros de viagem e dos desconhecidos que brindaram um novo ano de esperanças ‘mis’ valeu a pena.

E teve outra passagem de ano em viagem marcante também. Desta vez eram dois carros, eu e um cunhado, de Brasília a Maceió, para passar as férias na casa dele, que tinha vindo passar o Natal da família em Brasília.

Dia 31, o entardecer foi nos encontrar na Linha Verde, saindo de Salvador, onde nos perdemos um pouco. Primeira parada: Praia do Forte, um dos ‘points’ da região. Conseguimos vaga num estacionamento entupido de um resort cheio de gente extremamente animada… que não tinha vagas para hospedagem. Foram até gentis: nos deram liberdade para tomar banho, se quiséssemos, mas dormir só na praia, que já não tinha lugares vagos ou nos próprios carros…

Seguimos em frente. Entramos em Imbassaí, mais simples e menos famosa. Pousadas cheias e também sem vagas. Mas nos informaram que ao longo da Costa Verde, a maior possibilidade de encontrar algum canto era Conde, uns 80 quilômetros à frente. Chegamos lá beirando as 10 horas da noite, uma cidade quase vazia e às escuras. A cidade não beijava o mar: suas praias ficavam a uns 07 quilômetros, em Sítio do Conde.

Atravessando a cidade e parando aqui e ali, um bom baiano nos deu a dica: ‘Vão pro Sítio e procurem a pousada da Fulana de Tal… Digam que fui eu que mandei que ela dá um jeito e arruma acomodação pra vocês. Fomos, mas não havia acomodação na pousada da Fulana de Tal nem em nenhuma outra. Mas ela deu um jeito. Além do banho e do jantar oferecidos, que aceitamos, eu e Zoca dormimos cada um em seu carro e as mulheres e crianças numa espécie de varanda numa das laterais da pousada, onde ela estendeu colchões, lençóis e cobertas.

E a passagem aconteceu na praia, descendo da pousada, onde cadeiras e mesas enfeitadas e iluminadas à luz de velas nos permitiu confraternizar com muitos outros brasileiros, vindos de várias partes do país, a esperança de um novo ano.  Mas eram anos mais felizes. Não havia nuvens pesadas pairando nos horizontes, não havia tanto ódio sendo derramado diariamente pelas redes sociais… Aliás, não havia nem redes sociais.

Melhor parar por aqui. Dizem os entendidos que os primeiros sinais de senilidade aparecem quando a gente começa a dizer que os tempos passados eram mais felizes que o tempo presente, e eu ainda pretendo viver com lucidez e esperança por algum tempo… Tenho muito que fazer ainda e 2020 vai nascer ‘agurinha mesm…’! Quem sabe o Brasil reencontra sua democracia? E eu a minha paz!

 

 

 

 

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