Contos de Natal

É noite de Natal e eu não tenho mais uma família tradicional presente. Divorciado duas vezes e vivendo com uma filha, um irmão, dois de seus filhos e um primo-irmão, não há ceia de Natal: minha filha vai passar a noite com a mãe e sua família, assim como a sobrinha. E os presentes preferem ver tevê, filmes e séries a render graças a Deus e seu filho ou a celebrar a união de uma família, já que as famílias se perderam na roda da vida.

Até o ano passado, com minha mãe ainda viva e ativa, fazendo questão de manter uma tradição da qual ela participou por quase 100 anos, nós ainda nos reunimos na noite de Natal para, à sombra de um pinheiro de fantasia, numa cozinha caipira coberta de enfeites do inverno europeu, comer frutas importadas do Oriente Médio e beber uísque, eu e ela, e cerveja, os demais.

Mas hoje, neste ano da graça de 2019, é um dia como outro qualquer. Com a vista cansada, imagens distorcidas na tela, desligo a televisão e me sento frente ao computador, pensando em escrever um conto de Natal. E me vem à lembrança uma das conversas que tive com minha mãe em seus últimos dias, quando ela já demonstrava que, definitivamente, precisava ir embora.

Foi no mês de abril, mas ela se lembrou, sem que nem porque, do primeiro Natal que ela passara longe da família, em Parnaíba, Piauí, para onde fora logo depois de se casar com meu pai, que tinha sido designado médico do leprosário daquela cidade.  Era só ela e meu pai, ela com 23 anos e ainda tomando conhecimento de um mundo totalmente desconhecido para ela, tanto nas comidas, nos temperos, nas frutas, quanto na linguagem e nos costumes… além da visível imensa miséria.

E foi exatamente isto que mais a marcou na noite de Natal. A mulher do diretor do leprosário havia convidado meus pais para passarem o Natal com a família deles, e eles foram. Era um grande sobrado numa rua central de Parnaíba, um sobrado avarandado cercado de outros sobrados e casarões, distinguindo bem a elite da cidade, em meio às centenas de casas e casebres que bem definiam o perfil pobre da maioria da população.

Mas, do sobrado a miséria estava longe! A família era grande, estava toda presente, exceto um filho que estudava na Europa. E havia um enorme entra e sai de gente, amigos, vizinhos, políticos, todos claramente imbuídos do espírito cristão, mas fazendo uma boquinha antes da tradicional Missa do Galo, que aconteceria na Catedral de Nossa Senhora da Graça, com a ilustre presença do interventor do Estado, que minha mãe ainda não tivera o prazer de conhecer.

Ao contrário dos natais passados com a própria família, a ceia, após a missa, não tinha nada das tradicionais frutas importadas, peru morto de véspera, leitoa assada com tutu de feijão e torresmo de barriga, galinha caipira, rabanada, cascata de frutas, broa e biscoito de polvilho… Os pratos na longa mesa de madeira do salão de jantar eram Maria Isabel (picadinho), carne de sol, capote (galinha d’Angola), baião de dois, buchada de bode, acompanhados de doce de caju, de buriti, de bacuri, de mangaba e de umbu e, pra rebater o café, bolo de goma e bolo frito.

Uma noite de Natal como todas as noites de Natal, apesar das diferenças de gostos e costumes, de todas as famílias cristãs de todo o mundo. E aí veio o maior estranhamento de minha mãe. Encerrando-se a ceia, os sinos da Catedral começaram a repicar, como se outra missa fosse ser celebrada. Não era! Boa parte dos presentes, carregando copos e cigarros, foi para o varandão frontal da casa para apreciar, comentar (e até rir um pouco) de um costume tradicional da região: mulheres, homens e crianças iam formando filas em portões laterais dos sobrados e casarões mais iluminados para receberem os restos das respectivas ceias, devidamente distribuídas pelos empregados uniformizados.

– Por que a senhora se lembrou disso agora, mãe?

–  Eu estava lendo um texto do seu blog, outro dia, e você compara o Brasil de hoje com o do tempo das histórias escritas por seu pai sobre sua vida de médico. Nos muitos anos que nós vivemos pelo interior, eu convivi diariamente com  miséria e sofrimento. Esta ceia de Natal em Parníba tem mais de 70 anos e, pelo que eu li no seu texto e vejo no noticiário da televisão, o Brasil não mudou nada! Não há Cristo que dê jeito nesta terra não?

 

Pós-escrito: por falar em espírito natalino, me parece que o entendimento que o brasileiro em geral tem deste espírito, hoje e ontem, é um tanto ambíguo. As imagens mostradas ao vivo e a cores dos hospitais do Rio nestas últimas semanas, especialmente uma acontecida em frente ao Hospital Souza Aguiar – dois homens de terno preto saindo do Ambulatório e despejando da cadeira de rodas na calçada, com naturalidade, um homem desgrenhado, sujo e aparentemente  tonto – são a expressão do nosso tempo, assim como o relato de minha mãe sobre  a ‘solidariedade’ cristã hipócrita dos bem nascidos de uma cidade de um dos Estados mais pobres do Brasil era a expressão daquele tempo.

Apesar do nome, as histórias de minha mãe e do homem largado que morreu à porta do hospital, não são contos natalinos, são fatos reais, acontecidos com uma diferença de 77 anos… o Brasil cresceu, modernizou-se, evoluiu, a educação alcançou todo o povo e a miséria absoluta foi reduzida. Mas, a mentalidade colonizada e elitista, mesmo daqueles que subiram um degrau apenas na vida, continua igual. E, como disse ela, para isto, nem Cristo, seja o crucificado e ressuscitado, seja o verdadeiro, dá jeito!

Mas é noite de Natal. Louvemos Cristo e seus 02 mil anos de tentativas de tornar os seres humanos mais humanos…

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *