As paredes brancas de uma vida

 

I

As mãos perambulavam ágeis, os dedos deslizando pelo rosto enrugado, massageando as bochechas ôcas de dentes, firmando as pálpebras cerradas. Ajeitaram as flores abundantes e pararam, maestrosas, num último acorde. Os olhos perscrutaram , críticos, algum detalhe esquecido, alguma falha impossível. Perscrutaram só, porque Waldemar tinha uma excêntrica certeza de perfeição.

Reposta a dentadura, o que fora um juiz de sabe-se lá que instância, parecia sorrir de absoluta satisfação no conforto do caixão. Ou melhor, féretro. Féretro é mais retumbante, mais distinto, soa melhor. E, além do mais, o ocupante é um juiz. Ou foi um juiz, uma excelência. E, se é que defunto possa ser invejado, o ex-juiz o seria até baixar sepultura, já que o serviço pré-purgatório, como o próprio Waldemar gostava de chamá-lo, estava uma coisa de bem feito. Até parecia que o homem, o morto, é claro, respirava de contente. E olha que fazer morto respirar não é pra qualquer um não!

Waldemar sorriu pra dentro, pois tinha consciência de quão bom ele era. Já tinha mais de 10 anos de casa, o que não significa que ele fosse velho, não. Até que não. Trinta e cinco, quarenta anos, se tanto. Começara cedo, estudando cadáver pra vestibular de Medicina, vestibular passando e ele ficando no meio de cadáveres. Sem querer, descobrira a profissão. E não precisou nem de teste vocacional, se bem que um teste nunca iria dar uma profissão daquelas.

E gostava… mais que isto, adorava o que era…Que alegria quando foi efetivado no cargo de papa-defunto mor da cidade e recebeu seu primeiro cadáver como tal. Pulou, dançou, gargalhou… e o defunto lá, um garoto atropelado na esquina dos Aflitos, esperando pacientemente. E olha que o necrotério estava cheio de gente. Viva e boquiaberta! Quase foi demitido!

Os anos comeram o tempo e, com  a mesma alegria, devidamente contida ao seu próprio interior, ele continua, cada vez mais perfeito, artista insuperável de uma arte pouco apreciada. Waldemar conhece mesmo o ofício. Dava gosto de ver sua obra pronta. O sujeito podia chegar lá do jeito que fosse, retalhado, inteiro ou sem pedaços, que saía mais lindo que quando vivo. Os atropelados, então, eram a sua delícia. Chegavam arrebentados, ossos quebrados, esmagados, sangueira espalhada. Waldemar limpava tudo, pintava, costurava, transplantava, penteava e mais um caminhão de coisas que só um especialista como ele sabia e podia fazer.

O  problema é que com isto, Waldemar esquecia do resto. Bom, problema lá de quem quiser, porque o Waldemar pouco se lixava pro resto. Sonhos, esposa, filhos, diversão, futilidades da vida não lhe interessavam. E não mesmo! “Besteira!” dizia em conversa com seus mortos e, às vezes, com seus botões… “Besteira da grossa! Minha vida é aqui, no meio dessa brancura linda… Mulher? E o que eu vou fazer com mulher? Cozinhar, deitar, aporrinhar os ouvidos da gente todo dia…? Haverá alguma mulher capaz de compreender a poesia dessas paredes brancas? Desse cheiro de morte espraiado pelos cantos todos? Dessas manchas de sangue indeléveis para todo o sempre? Se é que há poesia nesses troços todos, isso é lá com ele… ele é que é papa-defunto!

E por isso, continuava solteiro. E convicto. E era feliz mesmo.  Notava-se pela placidez de seu rosto… se bem que isto podia ser consequência da convivência com a palidez de seus cadáveres. E pela constância de seu sorriso, um sorriso de corpo inteiro. Mesmo quando a boca permanecia fechada, percebia-se o sorriso que irradiava dele. Contagioso até. E não era fingido não. Eram gargalhadas e gargalhadas de quem nada teme, nem mesmo a morte. E é óbvio que, ao menos em morte, Waldemar era catedrático

Um dia, embolostrou…

II

                Quando um sujeito chega incólume aos trinta e cinco, quarenta anos, sem achar a beleza simples de umas mãos dadas, andando pelo espaço, de uns olhos se perdendo pela gente, lavando a alma de todos os probleminhas cretinos que aparecem, é muito difícil de se crer numa destas paixões repentinas e fulminantes. E se o sujeito vive da morte alheia, e vive bem, muito mais difícil ainda. Mas, não é que o Waldemar se apaixonou? E não foi paixão atoa não. Foi troço de doer… e bem doído. Dessas paixões de se perder o apetite, de não andar, ficar zanzando pelas ruas, bebendo pelas noites, perdido do mundo por horas, dessas paixões pelo mulherão do vizinho quando se tem 15 anos. Loucura mesmo. E loucura pior porque Cristina não demonstrava qualquer interesse por Waldemar.

Cristina… Puxa vida! O nome certo pra mulher certa! Linda de tudo que são ângulos. E isso, Waldemar podia ver a qualquer hora. Era beleza pra não acabar mais. De trás, de frente, de perfil, do outro perfil, não tinha por onde errar. Pele virginalmente branca, cabelos longos pretos, num contraste perfeito. O diabo era a não correspondência… Necas de pitibiribas! E olha que Waldemar não era de se jogar fora não. É… todo mundo acha que um papa-defunto, para ser papa-defunto, tem que ser magro protuberante, meio cadavérico, branco pálido, olhos fundos, foscos e fixos. Mas, não é nada disso não. Waldemar, pelo menos, não era. Magro, vá lá que fosse, mas de olhos negros e brilhantes e pele negra luzidia, retinta… Filho, neto, bisneto e etcétera de negro.

Aí, talvez, estivesse o problema: racismo! Mas, Waldemar não dava importância a somenos… Não lhe dava confiança? Ele a obrigaria! Waldemar sequestrou Cristina, então… Quer dizer… sequestro é modo de dizer, ele levou-a para sua casa. E uma coisa há pra se dizer: em nenhum momento, ele abusou de Cristina. Honras sejam feitas a ele, que provou a dele, e a ela, que conservou a dela. Outra observação: Cristina não opôs qualquer resistência, não reclamou nem uma vez. Continuou quieta, boca fechada, sem beijos, mas sem queixumes, muxoxos ou chororô. E isto durou o quê? Três dias? Meia semana em que Waldemar abriu livros e livros, declamou versos de amor, comprou até uma radiola e discos, muitos discos, que enchiam o ar de canções de amor em inglês, italiano, português… E Cristina quieta, muda, irredutível!

E aí, quieta, muda, irredutível, começou a protestar… Do seu jeito! O cheiro, a decomposição… os vizinhos curiosos… incomodados… assustados… denunciantes. E Cristina foi-lhe arrebatada numa linda noite de lua, quando Waldemar voltava pra casa trazendo o último disco de Roberto Carlos que, tinha certeza, abriria o coração de Cristina.

Cristina, a bela e virginal Cristina que, mesmo começando a se decompor e exalando um certo fedor característico, estava linda em seu vestido de noiva, véu e grinalda, artisticamente preparada para seu casamento com e por Waldemar,  retornou pro necrotério e, com as devidas desculpas das autoridades, foi devidamente enterrada pela família. Com um pequeno atraso de três dias, mas isto não é raro na administração pública.

Waldemar foi preso. Mas, psicologicamente perturbado, foi considerado inimputável e internado, pelo menos por algum tempo, numa clínica psiquiátrica. Nem tinha porque apodrecer numa prisão, pois ele não matara ninguém, apenas sequestrara seu amor que, infelizmente, era um cadáver. Três meses depois estava recuperado. E foi reincorporado ao necrotério, não mais como papa-defunto mór, mas como especialista em desastres e tragédias em que a recuperação dos corpos exigisse toda a perícia e experiência e  arte de Waldemar.

Waldemar está lá de novo, mãos ágeis, firmes, olho crítico, na excêntrica certeza de sua arte. E o que importa é justamente isto: lá estar ele de novo preparando belos invólucros das almas que sobem para o purgatório. Até Deus gostou: na semana que ele foi reintegrado, houve um desastre de ônibus na BR-3. Vinte e oito mortos!

Horas e horas Waldemar se esmerou nos cuidados com seus acidentados. A cada corpo feminino, uma doce recordação… E a esperança de que Cristina, amada para todo o sempre, estivesse morta de saudades dele…

 

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