A garota do coletivo 84416

Antigamente, num antigamente ainda próximo, a mulher era, exclusivamente, um objeto de arte… Quando era bonita! Beleza sempre foi fundamental. Quando era feia, era só objeto. Os homens, tão cheios de si, tão cheios de mundo, não permitiam que a fragilidade feminina viesse perturbar seus sonhos onipotentes, viesse ocupar posições muito determinadas. Feia ou bonita, o campo de ação da mulher se limitava ao lar, para cuidar dele ou enfeitá-lo. ‘Lugar de mulher é na cozinha’ foi provérbio transformado em lei.

Os tempos são outros, mas ainda não mudou tudo. Daí minha estranheza quando soube que Maria Luíza Pompéu da Silva estava trabalhando de cobradora no ônibus que eu costumava pegar pra voltar pra casa no final da noite. Peguei o ônibus torcendo pra ser ela a trocadora. Era. Então, sentei perto e, confiando na minha cara de honesto – homens de óculos parecem mais confiáveis – falei:

— Boa noite, moça… Eu sou jornalista, estou voltando pra casa, mas fiquei curioso: é a primeira vez que vejo uma cobradora num ônibus… e a esta hora da noite! – Ela estava remexendo as moedas na gavetinha, fechou-a e me olhou de cima pra baixo, mas sem dizer nada.

— Você é mesmo cobradora de ônibus?

— Uai, moço, não ‘tá vendo? Sou trocadora sim. Já tem algum tempo… só agora que vim pra noite.

O ônibus já estava rodando há algum tempo. Ou melhor, já estava voando. Onze horas da noite. Segunda-feira. Ônibus quase vazio. Isto sempre desperta o desejo de voar do motorista. E a solidão do ônibus me animou a continuar puxando conversa. O que deixou Maria Luíza meio desconfiada. Meio só.

— Eu trabalho 08 horas por dia, moço. Fazendo troco o tempo todo, sem poder errar. Inda bem que eu sempre fui boa de conta…

O olhar ainda é desconfiado. Aliás, seu olhar constante é este. Desconfiado de todos e de tudo. Apesar do meio-sorriso que contempla todo mundo. Ela está numa profissão que muito homem não aguentaria. Mas vai se soltando aos poucos: diz o nome, repete que é trocadora há 01 ano, sempre na Linha Getúlio Vargas, , agora no turno das 16 às 24 horas.

— A profissão não é ruim não, moço. Talvez seja humilhante pra uma moça de muito estudo, mas pra mim, é tranquilo. A gente conhece tanta gente que nunca pensou em conhecer e conhece tanta gente que é obrigada a conhecer que no fim, descontando tudo, até que é muito bom. Mais desinibida,  fala mais abertamente, não repete tanto o ‘moço, e até me olha enquanto responde.

— Certo é que eu vim ser trocadora, uai. É um emprego, não é? Olha, eu vou te contar um negócio. Quando a gente é pobre e feia, só tem dois caminhos: ou se perde, ou se humilha. Eu resolvi me humilhar. Só que eu não acho que ser trocadora seja humilhante. Eu não tenho estudo ou dinheiro pra ficar escolhendo profissão não.

O ônibus resolveu aterrissar. Não sei porque, desconfio apenas, parou num sinal vermelho na esquina, o que deu chance para o motorista olhar diretamente pra mim, o que devia vir fazendo pelo retrovisor . Era um sinal de que não estava gostando. Fez aquela cara de quem vê propriedade sua sendo rodeada. Ao arrancar, sinal aberto, parece que vai tentar vencer a barreira do som, para chegar ao ponto final o mais rápido possível. Maria Luíza não ligou… já está acostumada às caras e aos vôos.

— Olha, eu já tive cinco namorados. Quatro queriam só uma coisa, o moço sabe o quê. O quinto queria a mesma coisa, mas pediu pra morar comigo quando soube que eu era trocadora de ônibus. Isto machuca a gente. Mas, até que foi bom. Por mais que eu queira casar, marido assim não serve não. E até que eu vivo muito bem solteira…

Maria Luíza é órfã de pai e tem cinco irmãos para criar. Trabalha 08 horas por dia e ganha pouco, mas bota comida no barraco, pros irmãos e pra mãe – o barraco fica numa favela há uns três quarteirões do final da linha de ônibus (eu moro perto também, mas no final do bairro, antes da favela começar). Ficou na escola até aprender a fazer contas e queria continuar, mas o pai morreu e ela teve que se virar: foi faxineira, servente de bar… até chegar a trocadora de ônibus, com carteira assinada. Carteira assinada era o céu!

— Até que é bacana, sabe? Passa um bocado de dinheiro por dia por minhas mãos. E eu fico sonhando que um dia eu vou ter essa dinheirama só pra mim… – Olhou meio amedrontada pra mim, como se eu pudesse achar que ela queria roubar o dinheiro do ônibus, e completou: — …mas é só sonho, moço, de brincadeirinha… O ônibus aterrissou no ponto final. E o motorista não está propenso a sair dele, enquanto eu não descer. Fica lá sentado, virado e olhando pra nós diretamente, com cara de poucos amigos. De inimigo, mesmo.

— Não liga não, moço. Ele pensa que pode mandar em mim. Mas, não manda nada! Pelo menos, por enquanto. — E deu um sorriso, que me pareceu esperançoso. Um meio-sorriso. Cansado e desconfiado mas, nem por isto, menos sorriso. Que não embelezava, mas suavizava seu rosto. Não sei quem foi que disse que as mulheres são seres inferiores. Deve ter sido um monge ou um ermitão…

Ah! Minha curiosidade em conversar com Maria Luíza – entrevistar, na verdade, já que sou jornalista – foi porque minha mulher me dissera que estava no ônibus outro dia quando ela deixou dois garotinhos sujos e esfarrapados passarem por baixo da roleta. E, ao olhar interrogativo e acusador de alguns passageiros, ela se limitou a abrir um sorriso claramente superior. Só por isto!

 

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