Um homem de bem (III)

Entre discussões e concordâncias, conseguimos conviver razoavelmente bem, mantendo o objetivo essencial do Instituto, a garantia de uma aposentadoria menos injusta para quem passou 40 anos trabalhando e contribuindo religiosamente com o INSS e com uma instituição privada, de cuja criação e implantação eu participara nos anos 70.

Encerrado meu mandato, nos distanciamos de novo. A comunicação passou a ser extemporânea, através dos grupos de aposentados da empresa ou de discussão do próprio instituto. As redes sociais estavam assumindo papel preponderante no relacionamento das pessoas e, pior, o país entrou num processo de radicalização política que mandou a tão propalada cordialidade do brasileiro pros quintos do inferno!  E a coisa ficou feia… bem feia! Botaram até Deus no meio…!

Hector, o filho do militar que adorava guerras e Garrastazu, regime de força, ordem. pátria amada, salve, salve! incorporou o espírito paterno e passou a apoiar  com crescente violência, pelas redes sociais somente – pelo que eu sei, nunca participou das manifestações, nem deixava os enteados irem – dos ataques a Lula, ao petismo, ao comunismo pagão, clamando pela volta dos militares ao poder.

No início, eu fiz algumas ponderações, relembrei minhas experiências dos tempos sombrios sob a ditadura, tentei mostrar que democracia exige respeito à diversidade… A cada mensagem minha, ele respondia com o jargão típico dos que, conscientemente ou não, passaram por uma espécie de lavagem cerebral, fosse pelos que não aceitaram o resultado das eleições de 2014, fosse pelos pastores neo pentecostais, que viram na radicalização uma oportunidade de ouro para expandir seus rebanhos de politicamente analfabetos.

Mas Hector não se enquadrava neste padrão. Nunca lera muito, é verdade… Nunca se preocupou em expandir seus conhecimentos além da matemática e da contabilidade, nem se tornara, como Maria Antônia, um fanático evangélico. Frequentava o templo, contribuía financeiramente com o pastor, mas impunha certos limites às pudicícias religiosas – continuava gostando, se bem que com menos frequência – de travessuras sob os lençóis…

Assim, me espantou um pouco a sua crescente violência pelas redes sociais e o repentino mergulho que fez na absoluta negação de qualquer argumento que pudesse confrontar suas posturas político-religiosas. Daí para se tornar um eficiente propagador de fake news foi um pulo.

Um caminho sem volta, aliás… Há bastante tempo que não respondo ou contesto suas mensagens, mas continuo nos grupos, e acompanho sua escalada: qualquer dia, vai achar as redes sociais inúteis e, de posse da arma que já comprou, vai sair dando tiro nos inimigos e, em especial, em comunistas e pagãos que querem avermelhar o auri-verde pendão da Pátria Amada Brasil!

E não vai demorar muito… Logo após a decisão do STF, interpretando corretamente a Constituição, invalidar a prisão em 2ª Instância, ele zapeou: “Nós vamos ‘esperar o Congresso’ aprovar alguma lei, daqui a uns 3 anos, abrindo as pernas pros esquerdeopatas voltarem ao governo? Vamos ignorar que o Judiciário civil, criminal e eleitoral é cubano-chavista, agentes de Satanás nesta terra ainda abençoada por Deus? Queremos ação, JÁ!”

                Que tipo de ação seria esta? Golpe militar como na Bolívia? Provavelmente. Porque no fundo, o medo que esta turma tem é que o povo tenha nova oportunidade de ascender social e politicamente, reduzindo um pouco que seja a monumental e histórica desigualdade de classe no Brasil.

Hoje, Hector e os seus estão muito felizes com os números da última pesquisa do IBGE: em 2019 já somos 13,5 milhões de miseráveis, 50% a mais que os 09 milhões que éramos há 04 anos atrás. A Pátria está voltando ao normal, retomando um padrão que já dura 500 anos, graças ao bom Deus…

Fico imaginando Hector, da varanda envidraçada de seu sobrado num condomínio da Capital, penalizado com alguns cachorros virando latas pelas ruas e pensando um jeito de jogar-lhes sobras do bom almoço que Angelita estava lhe preparando. Cachorros são animais irracionais e merecem carinho e consideração de um cristão ocidental.

Já os 13,5 milhões de brasileiros que estão sobrevivendo com R$145,00/mês ou R$4,83/dia ‘não progrediram na vida porque não aproveitaram os programas sociais que os nossos impostos custearam, ou não  gostam de trabalhar, são vagabundos funcionais. Que saudades do Carlos Lacerda, que mandava jogar mendigos no Rio da Guarda!’

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