Desculpas esfarrapadas

Tantos e tanos anos passados e de repente, não mais que de repente, eu me vejo nos tempos em que me sentia um mocinho a brigar com os bandidos que governavam o país numa ditadura que ainda não mostrara toda a violência de que era capaz. A velhice nos dá esta regalia: você se lembra de fatos bons e ruins que aconteceram durante sua vida, fica feliz com os primeiros e não se deprime com os segundos, nem se envergonha em contá-los, mesmo aqueles que não lhes sejam favoráveis.

Não tem uma relação direta com o fato, mas o fato que me despertou a memória daqueles tempos foi uma twittada d’O Antagonista afirmando que “Mesmo que a Argentina não estivesse na fila para a OCDE, o Brasil teria poucas chances de entrar agora sem a reforma da Previdência.” Esta mensagem, no fundo, é uma tentativa de culpar nós mesmos (que não fizemos o dever de casa), pela evidente esperteza de Trump, que enganou o Mito e trocou um monte de vantagens do Brasil aos americanos, todas concedidas, por uma ‘promessa de apoio’ à uma vaga no clube exclusivo do baronato capitalista. E que não foi cumprida.

Pois é… o site diz que ele continua apoiando, mas os países convidados foram a Rumênia e a Argentina (logo os hermanos, pô, que foram levados à bancarrota pelo Macri?). Daí,os ‘bolçais’ ficam tentando encontrar, via redes insociais, desculpas para a atitude  do ‘grande líder, amigo íntimo do caçula’. Interesses particulares, caras… Trump sempre ‘cadou e angou’ para o Brasil ou para o Mito e seus bolsokiods… Ele é e sempre foi o típico capitalista selvagem interessado em uma única coisa: grana, bufunfa, money!

E o babaca do Mito foi lá na Casa Branca beijar-lhe os pés e mostrar a foto em que fazia continência pra bandeira americana… E topou trocar a OMC, Organização Mundial do Comércio, onde tínhamos  certos privilégios como país em desenvolvimento (e cujo presidente é brasileiro) pela OCDE, por recomendação do presidente americano. Caiu na conversa! Que o Mito, seus filhos, seus generais de pijama e suas deputadas histéricas se descabelem, eu não estou nem aí… O problema é que o país se desmoraliza e periga voltar ao 3° mundo, um desejo evidente de sua elite política e econômica!

Desculpem-me… acabei me entusiasmando. Eu dizia de uma lembrança despertada pel’O Antagonista, que me levou aos meus tempos da ditadura: as inevitáveis desculpas encontradas pelas chamadas pessoas de bem, amigas e colegas de meus pais com quem convivíamos em Belo Horizonte, classes média e alta, frequentadoras das missas dominicais, do Automóvel Club e do Minas Tênis Clube, para as besteiras administrativas e políticas cometidas pelos generais de plantão e seus prepostos civis nos Estados.

No campo administrativo, as desculpas mais usadas para justificar falhas ou atrasos na execução de obras, ou por incompetência gerencial na gestão de políticas públicas, eram relacionadas às deficiências dos civis contratados (em licitações ‘absolutamente legítimas, incorruptíveis’, afirmavam) ou à mão de obra desqualificada e preguiçosa existente no Brasil.

No campo político, as conversas eram mais restritas, geralmente em reuniões de poucos convivas. E a razão era simples: muitos dos filhos dessa turma eram jovens como eu e vários estavam comprometidos com a luta contra a ditadura, alguns, inclusive, se preparando para ou já envolvidos com a luta mais violenta, muito além dos protestos e manifestações juvenis.

De qualquer modo, havia conversas  sobre o assunto, bem como apoiadores ingênuos ou intolerantes da ditadura entre os “velhos”. Lembro muito de uma, na casa de velhos amigos de meus pais, com a presença de um advogado comercial e sua esposa, professora aposentada, também convidados para o almoço dominical. Eu fui também, porque ia ter jogo do Cruzeiro no Barro Preto.

Em pleno almoço, o advogado começou a elogiar a polícia militar do governador Magalhães Pinto, que vinha, de “maneira enérgica e disciplinadora dando uma sova na estudantada vagabunda e mal educada que ficava cabulando aulas pelas ruas em vez de estudar, que era a obrigação dela”. Dizia ele, para um constrangido silêncio dos demais convivas: “Esta estudantada está sendo enganada por professores comunistóides e os pais estão permitindo que isto aconteça. Se fossem meus filhos, já estariam num colégio interno ou no Colégio Militar. Este país de vagabundos e desordeiros só vai pra frente à chicotadas… E só os militares sabem dar ordem unida a este povinho indolente!”

Naquela semana, nós, “um grupo de estudantes vagabundos”, tivemos uma “reunião política” para planejar algumas ações de protesto – pichação de muros e paredes, distribuição de panfletos, coisas assim. E o filho do advogado, colega do Estadual, pouco mais velho que eu, estava presente.

Numa pausa da reunião, cheguei junto dele e brinquei: “Pô, seu pai é gorilão mesmo, heim? Toma cuidado que qualquer dia ele te expulsa de casa…!” Ele disse, bem baixo e olhando pro chão: “Acho que não vai ser preciso…” Dois dias depois, fiquei sabendo que ele tinha saído de casa. Nunca mais voltou e seu corpo continua entre os desaparecido nos porões da ditadura.

Durante meses, carreguei uma sensação de culpa, como se a minha brincadeira sobre o pai dele fosse responsável pela sua saída de casa e as possíveis consequências que podiam vir  daí. Quem aliviou minha consciência foi frei Marcelo, do Convento dos Dominicanos, que foi curto e grosso: ”você não teve influência nenhuma! A intolerância era do pai dele, e a decisão de sair e entrar na luta subterrânea foi dele.”

Como eu disse, não há uma ligação direta entre as desculpas d’O Antagonista e minha lembrança… apenas a repetição, meio século depois, da mesma ladaínha para as mazelas do país:  a elite, que manda, faz tudo certo, de forma responsável e incorruptível, mas o povo não ajuda, é preguiçoso, mal educado, despreparado, só quer saber de rosetar! E como ensinou Goebbels, ‘uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade!’.  O Mito, presidente do Brasil, é a prova viva disto!

 

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