Entre a pena e a espada (III)

Eu sou apenas um rapaz latino americano diante de mitos, assim como milhares de jovens que cresceram nas décadas de 60, 70 e 80… a geração que viveu e sobreviveu à ditadura. Mas alguns se tornaram figuras públicas, mesmo não alcançando a dimensão de Chico ou Jair. O que é normal porque, numa população de 200 milhões de pessoas, 100, 1.000, 10.000 se destacam, mas pouquíssimos se tornam mitos, mesmo falsos. A imensa maioria vive, cria sua família, às vezes se destaca entre seus pares e seus familiares, mas não é nunca notícia dos telejornais…

Quer dizer, a minha geração compreendia e participava da vida deste jeito. As gerações posteriores exigiram seus 15 minutos de fama e as novíssimas gerações a fama a qualquer custo, transando publicamente nos BBB’s da vida ou entrando num colégio, matando colegas e se suicidando após. Miliardários, hackers contratados, russos e a América profunda transformaram um misto de tubarão capitalista com showman de tevê em estadista e presidente da mais poderosa (ainda) nação do mundo… Sonegadores, ruralistas, jovens robotizados e a classe média preconceituosa e amedrontada transformaram um parlamentar de baixo nível, falastrão e twitteiro em mito e presidente deste nosso pobre país…

Para compensar e inocentar minha geração, quem escreveu uma obra prima como esta é mito por genialidade e esforço próprios:

Eu não convivi com mitos nas décadas de 60, 70 e 80… mas conheci pessoalmente figuras que se tornaram públicas, que também representam minha geração: Eduardo Azeredo, José Mayer e Frei Beto. Edu foi meu colega de Colégio Estadual, Zé Mayer foi diretor da única peça que escrevi para teatro e  frei Beto foi um dos freis iniciantes que discutia política com a gente no Convento dos Dominicanos, que ficava pertinho do Colégio Estadual da Serra, onde terminei o ginásio.

Eduardo, filho de Renato, braço direito de Tancredo Neves na política de Minas e seu sucessor natural, foi prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas, senador e era presidente do PSDB aecista quando foi enrolado em falcatruas de Caixa Dois. Depois de anos de enrolação judicial, foi preso, mas está apelando e nossas instituições devem enrolar decisões mais rigorosas por um bom tempo ainda… Amigos do Menino do Rio não merecem castigos severos!

José Mayer fazia o Curso de Letras na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, que ficava nos 5° e 6° andares do prédio da rua Carangola, onde funcionava o Curso de Jornalismo (no 8° andar). Meu amigo Wandeir Malaguti era colega dele e participava das aventuras teatrais daqueles tempos… Uma delas foi uma peça apresentada no Teatro Marília, dirigida por ele, José Mayer, com textos de jovens universitários, inclusive eu. Ator nato, Mayer virou estrela da Globo e, como tal, foi execrado pelas fãs e massacrado pela própria mídia que o consagrou após uma estranha acusação de assédio sexual. Sem direito à defesa!

Nos meses pré ditadura, de intensas discussões políticas, alguns alunos do Colégio Estadual da Serra matavam aulas chatas, tipo Moral e Cívica, e iam discutir política séria com os dominicanos, inclusive Frei Beto, iniciando sua vida religiosa. Adepto da Teologia da Libertação e militante ativo de movimentos pastorais e sociais, com a ascensão de Lula em 2002, Frei Beto foi personagem importante do Fome Zero, que se transformou no Bolsa Família e tirou milhares de brasileiros da pobreza absoluta. Sem largar a fé e a batina, hoje é jornalista e escritor.

Não me tornei amigo de nenhum deles, mas os acompanhei de longe, mais até do que amigos fraternos que fiz na mesma época sombria. Contingências da vida…  E uma pitada de inveja, claro… Afinal de contas, os três vinham de famílias estruturadas como a minha, tinham o mesmo padrão social, os mesmos estudos, nível intelectual semelhante e as mesmas esperanças de viverem num Brasil melhor. Mas eles atingiram, em pouco tempo, patamares superiores ao meu: apareciam em jornalões, revistas e tevês, eram admirados ou detestados, nunca ignorados, em círculos cada vez mais amplos da população.

Isto numa época em que ‘círculos amplos da população’ queria dizer poucos milhares de pessoas, alcançadas por rádios e tevês metropolitanas ou, quando muito, regionalizadas (redes nacionais só começaram a ser implementadas na década de 80).

E isto é uma das coisas que me angustia hoje: será que se aquela época disponibilizasse os mecanismos de intercomunicação manipulados pelas gerações atuais, eu não teria esta incômoda sensação de que minha geração falhou em construir caminhos para que a democracia e a liberdade nunca mais fossem ameaçadas?

Será que se a gente contasse, naquela época, com influenciadores digitais que são seguidos por milhões de pessoas, e com robôs que retransmitem mensagens positivas (ou  negativas) para outras milhões de pessoas, nossas democracia e liberdade teriam se consolidado e não sofreriam mais ameaças  diante de qualquer crise política ou econômica?

Ao ver que o Brasil de hoje  está focado e preso em redes insociais que determinam as atitudes do presidente da República, que condicionam o voto de parlamentares, que levam milhares de pessoas às ruas, até mesmo para pedir a volta da ditadura, e se trancam em seus celulares e grupos , ignorando quem está a seu lado, eu tenho dúvidas se as novíssimas gerações vão produzir algo positivo para si próprios e para o país.

Será que elas entendem que a liberdade que elas tem hoje, duramente conquistada, implica também em responsabilidade para com os outros e com o país? Será que compreendem a diferença entre um mito baseado em fake news regiamente pagas por interesses financeiros e um mito que se cria a partir da própria capacidade intelectual?

Jair Messias Bolsonaro passou a vida pregando o poder do homem sobre a mulher, o poder da violência sobre a violência, o poder dos ricos sobre os pobres, o poder da Pátria sobre qualquer direito humano, o poder de Deus sobre todos… E foi eleito presidente da 8ª economia do mundo!

Chico Buarque de Holanda passou a vida criando poesia, pregando a paz, cantando o amor… E acaba de ganhar o maior prêmio literário da Língua Portuguesa… Daqui a cem anos quem será que as futuras gerações lembrarão e citarão como exemplo a ser seguido? O que estará gravado nos alfarrábios e chips do futuro? O que estará arrepiando os pelos da nuca e derramando uma lágrima de sentida e incontida emoção?

Declarações anti feministas como “Jamais estupraria você, porque não merece!” ou inumanas como “O erro da ditadura foi torturar e não matar!” ou anti sociais como “Direitos humanos, esterco da vagabundagem!”, ou homofóbicas como “Prefiro ter um filho morto em acidente do que um filho gay!” ou os versos de Eu te amo, a maior declaração de amor do cancioneiro brasileiro: “Se nós, nas travessuras das noites eternas//Já confundimos tanto as nossas pernas//Diz com que pernas eu devo seguir…/// Como, se na desordem do armário embutido//Meu paletó enlaça o teu vestido//E o meu sapato inda pisa no teu…” (Tenho muito medo que sejam as primeiras…!)

 

 

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