Cartas (I)

Nestes novos tempos informáticos e performáticos, carta virou peça de museu… apesar de figuras como Fernanda Montenegro em Central do Brasil continuarem exercendo seu mister em estações rodo ou ferroviárias Brasil adentro… Celulares e smartphones apareceram e os dedos substituíram lápis e caneta. Quem os tem, digita, não mais escreve… Mas o analfabetismo permanece altaneiro no Brasil e escrevedoras de cartas saudosas ou auspiciosas ainda são precisas.

Para desmentir este digitador, recebi dois envelopes esses dias: num, grande, havia desenhos e bilhetes de meus netos e uma cartinha de minha neta, todos nascidos e vivendo em Washington, todos dirigidos à bisavó quase centenária, que sofreu um acidente e fraturou o fêmur. Cartas sempre serviram para isto: enviar amor e carinho de quem não está por perto.

A outra vinha num envelope perfumado, com selos de país distante e gelado: Suíça. Era de Dèzinha, a ex gerente do Swing Club que havia aqui na minha região. Havia, pois ele foi fechado, segundo eu soube, e transferido para uma cidade do sul de Goiás, um grande polo agro-industrial onde o dinheiro ainda corre com fartura.

Como eu já contei aqui, Dèzinha se aposentara e fora morar em uma casa de praia no sul da sua Bahia. Da Bahia para a Suíça era um grande pulo e, sem abrir o envelope, calculei: se ela estava escrevendo carta de lá, ela não devia estar lá para passear… Cartas sempre serviram para isto também: contar novidades distantes, para matar as saudades, ou matar de inveja quem ficou para trás. Abri o envelope, meio inebriado pelo perfume…

Duas folhas de papel umedecidas e perfumadas (1º Mundo é outra coisa!), e uma letra esparramada diziam que:

“Estou numa pequena cidade dos Alpes Suícos, ao lado  da famosa Davos. A cidade, que mais parece uma aldeia natalina, se chama Weisfluh, é a terra natal do meu talvez quiçá futuro marido e tem uma igrejinha linda onde ele foi batizado e pretende se casar comigo… Eu sempre gostei de loucuras, mas esta é a maior da minha vida… Casar com um suíço que é funcionário do Metrô de Amsterdam, dois anos mais novo que eu, apaixonado pelo Brasil e que não entende p…* nenhuma de sexo!

É uma experiência nova para mim, depois de tantos anos de p…..a*! Ele é apaixonado pelo Brasil, pelas mulheres brasileiras… e, honestamente, não sei se ele quer casar comigo  para mostrar aos amigos que conquistou uma ‘brasilerra’ ou porque me ama… Você sabe, nas poucas conversas que tivemos, que eu acredito no amor, apesar de ser uma p…a* a vida inteira.  Minha filha e meus netos são a prova disto.

Eu lhe disse, antes de ir embora, que eu poderia viver com você, mas você estava muito machucado para entender isto, preferiu se recolher… E eu, depois de 30 anos servindo aos e conhecendo os homens, não podia ficar esperando… Nem imaginar que eu gostaria da solidão, da inatividade, das perspectivas de encontrar companheiros para uma noite numa praia sem outros atrativos… Em pouco tempo, estava entediada.

Aí, apareceu o Rutger, um morador de Amsterdã, funcionário do Metrô da cidade, tão apaixonado pelo Brasil que estudou português durante 05 anos e, todas as férias, viajava para o Brasil: conheceu o Ceará, o Rio Grande do Norte, a Paraíba, Pernambuco, as Alagoas, Sergipe e, por último, a Bahia… E aí, me conheceu. E cá estou eu vivendo em Amsterdã e conhecendo a Europa…

Honestamente, não gosto! Eu já viajei pela Holanda, pela Bélgica, pela França e pela Suíça… tudo é muito frio! Não tem a ver com o tempo, tem a ver com a atitude das pessoas! E, exatamente por isto, vou adiando meu casamento formal com Rutger… Ele é uma boa pessoa, parece que, realmente, me ama… mas eu não sou uma idiota que acredita em amor à primeira vista! Amor é construção, é rotina, é convivência dia a dia, noite a noite. Este negócio de chegou, me viu e pimba! eu sou a única mulher da vida dele!? Para mim, não cola…

Pode ser que eu fique por aqui… pode ser que eu volte para a Bahia! Se voltar, eu te escrevo outra carta… (eu gosto de escrever cartas. Quem sabe você se anima? Mas, tem outra coisa que está me preocupando e que, talvez, você consiga resolver: Zú e o doutor nosso amigo…

Acho que você sabe que o Swing Club foi fechado e transferido para o interior de Goiás. Não tem nada a ver com minha aposentadoria… foi uma decisão empresarial! A perspectiva de lucro por lá era bem maior que em Brasília, considerando os novos tempos, de ditadura disfarçada…”

Zú não quis ir. Fica muito perto da terra dela, dezenas de fazendeiros do Triângulo Mineiro frequentam a região, participam das feiras e rodeios, e frequentam os p……s* chiques, claro, e ela não gosta de regredir, se mostrar à família e amigos que “venceu” na vida vendendo o corpo. Meu amigo doutor aproveitou a chance e ofereceu sua casa até ela encontrar uma nova fonte de renda. Ela encontrou… mas ele não achou que valia a pena. Meu amigo doutor era e é apaixonado por Zú, apesar de negar isto, e tentava encontrar alternativas para mantê-la sob sua guarda. O doutor é das antigas… acha que basta dizer que ama uma mulher para ela se derreter e se prender ao ‘seu homem’… Zú detesta amarras. Está infeliz. (continua)

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