O círculo da vida (III/III)

Parte da minha casca introspectiva só foi reduzida depois que me separei, farreei por uns tempos e me  casei, de novo, com Lúcia… e sua família! Irmãos e irmãs, cunhados e concunhados, tios e primos, amigos e conhecidos, passaram a se reunir na Chalueo, chácara que comprei em Alexânia, entre Brasília e Goiânia. Durante uns 13 anos, nós consolidamos uma vida comunitária ali, bem diferente da minha natural solidão.

Infelizmente, a vida não estaciona no ponto que a gente quer… ela é dinâmica, camaleônica, se transforma de tempos em tempos. O crescimento econômico  natural e benfazejo da família tornou a Chalueo desabitada (só eu ia lá de 15 em 15 dias!), apenas uma lembrança inesquecível na memória de cada um…  Pessoas queridas tomaram seus rumos, formaram seus próprios núcleos familiares e a presença constante tornou-se esparsa, trocada pela nova forma de se encontrar, o contato via celular. Gozações e brincadeiras regadas a cerveja numa mesa de bar viraram memes, conversas sérias olho no olho viraram mensagens pelas redes sociais. O mundo evolui, dizem os jovens… e têm razão! Um idiota, ‘convenientemente insano’ , acabou de ser eleito presidente usando a arma do momento, o Whats’App…

Este novo mundo reforçou minha natureza solitária. Nunca me senti muito à vontade com o contato humano, com segredos ao pé do ouvido, com conversas ao léo. Sempre detestei aquele lengalenga ao telefone, como se a vida da gente dependesse daquela voz ao longe, cessando se o telefone fosse desligado.

As redes sociais simplificaram minha vida, mas me dão a nítida impressão de que estou fechando meu círculo de vida: é como se eu voltasse à minha infância, brincando sozinho com meus brinquedos (que, agora, é um computador), imaginando histórias que eu escreveria algum dia (meu blog e o romance que ainda não terminei), navegando por mares nunca dantes navegados (o que continuarei fazendo porque navegar não posso mais).

Outro dia, eu estava mostrando para minha quase centenária mãe uma foto de meu neto Theo e o time de futebol juvenil em que ele joga no condado de Arlington, em Washington, onde moram minhas filhas mais velhas. Ela ficou olhando durante algum tempo, fez alguns comentários sobre a mudança dele desde a última vez que o vira – já faz muito tempo! – e pronto. De madrugada, ouvi barulho no quarto dela, vi que a luz estava acesa e fui verificar.  Quando entrei no quarto, ela estava em pé ao lado da cama, muito agitada e, ao me ver, falou: “Ainda bem que você chegou! Está muito machucado?” Eu não estava. Conversa daqui, puxa dali, descobri que ela associara o time de meu neto com um dia em que eu fora jogar bola no campinho do parque municipal de Beagá e sofrera um tombo (o campo de futebol de salão era de cimento) e raspara perna e braço, chegando em casa meio ensanguentado.

Isto é recorrente na vida dela hoje. Ela tem poucas oportunidades de conversar atualmente e, quando as tem, passa boa parte da conversa falando da infância, da juventude, dos tempos de criança dos dois filhos, das aventuras Brasil adentro, acompanhando a vida de médico sanitarista de meu pai. O presente continua existindo, mas é uma existência difícil, em que a vontade de fazer coisas que sempre fez é impedida pela deterioração física, o que é mais sentido ainda porque a lucidez dela permanece impressionante.

Percebi, então, que a vida da gente é uma sucessão de ciclos, sem medida etária para acontecer, e que varia de acordo com cada pessoa. Os ciclos se entrelaçam e se mesclam ao longo da vida, sendo o último um retorno ao primeiro, encerrando o círculo da vida. Este primeiro é o do aprendizado, quando você acrescenta à herança biológica os conhecimentos que lhe são repassados pela família e pela sociedade onde vive. O segundo é do enfrentamento, quando você aplica o que aprendeu no primeiro ciclo, enfrentando a vida com a bagagem adquirida até então, que nem sempre é suficiente, o que te obriga a continuar aprendendo…

O terceiro ciclo é o da consolidação ou do reposicionamento: você está inserido na sociedade, casou, tem filhos e está adaptado ao seu modo de vida, ou não era bem assim que você imaginava que seria sua vida e a insatisfação ou a infelicidade te leva a tentar mudar totalmente. Só que a mudança não pode ser radical! Há uma vida já vivida que não fica para trás, nem pode, e continua presente. Ou seja: ou você se acomoda e segue tranquilo e sereno, saltando direto para o quinto ciclo, ou você assume sua nova maneira de viver, com um pé no terceiro ciclo, com certos aspectos da vida devidamente consolidados, e outro no quarto, aprendendo novas posturas, mudando velhos conceitos, se adequando a uma vida diferente da qual você imaginara quando ainda cursava os ciclos anteriores.

Daí, você chega ao quinto e último ciclo. Os filhos já partiram, os netos são alegrias momentâneas quando aparecem na sua casa, não existem mais objetivos a alcançar, os desejos físicos arrefeceram e os exercícios mentais são muito mais apreciados. A vida se transmuta em um filme repetitivo que, quase sempre, te faz reviver cenas que foram sendo apagadas a cada ciclo vivido. Para uns, a senilidade mental os leva a viver, de novo, apenas no primeiro ciclo. Para outros, como minha mãe, lúcida, a recorrência a este primeiro ciclo é como se fosse a resistência final à inexistência de outro ciclo, a morte, enfim.

Eu estou, certamente, retornando ao meu primeiro ciclo, à timidez, que me afasta das pessoas, e à solidão, que me permite mergulhar nos e-books. Queiram os deuses, porém, que a impressão de círculo se fechando não se concretize ainda… Filhas eu já tive, árvores já plantei, mas meu livro ainda não terminei! E viver é preciso! (fim)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *