A nova onda

João do Val é um micro empresário de uma pequena cidade do interior de Goiás, no caminho entre Brasília e Goiânia. Convivi com ele durante muitos anos, quando tinha um sítio na região, onde costumava passar os fins de semana. Ele ‘tocava’ um pequeno mercadinho na garagem estendida de sua casa, num bairro popular da cidade, com a qual ganhava um bom dinheiro, usando uma técnica infalível do capitalismo selvagem: comprava a preço de banana de pequenos produtores rurais, de indústrias caseiras, ou mesmo de picaretas em geral, e vendia a preço de caviar para sua freguesia, já que, mesmo colocando 20, 30, 50% de sobre preço, vendia na caderneta, coisa que os mercadões não faziam. E ele ganhava ainda mais, pois sua mulher era uma boa contadora, manejando suas contas e balancetes, de modo a livrá-lo de impostos federais e estaduais… Os municipais ele pagava direitinho! Afinal de contas, era eleitor e amigo do prefeito e, caso pintasse algum problema, o prefeito daria um jeito.

Durante os governos Lula, ele rachou de ganhar dinheiro: sua freguesia aumentou muito! Salário mínimo aumentado acima da inflação, Bolsa Família para os miseráveis, expansão da economia de baixa renda… Os preços das mercadorias vendidas por ele, com margens de lucro significativas, continuavam sendo vantajosos para a freguesia, já que os mercadões da cidade tinham que pagar impostos e, para manter margem de lucro razoável, remarcavam preços ainda mais altos que o mercadinho de João do Val que, ainda por cima, ‘fica logo ali na esquina…!’

Depois que vendi meu sítio e me aposentei, passei um bom tempo sem ver João do Val. Reencontrei-o há pouco mais de um ano no Facebook, como um anti petista radical, defensor da volta dos militares ao poder, ‘pois eles respeitavam a Pátria!’ – quando a ditadura acabou, João do Val tinha uns 18 anos e ficou com a ideia de um governo duro – ‘ideal para nosso povinho’ – de forte caráter cristão, que combateu a degenerescência moral que vinha assolando a sociedade, assim como respeitador da família tradicional, homem, mulher e filhos, o primeiro como cabeça do casal.

Quer dizer, ele não mudou muito desde quando frequentava meu sítio. Ficou mais radical depois que começou a frequentar as redes sociais, especialmente porque encontrou eco às suas ideias. Como uma que se tornou um mantra em suas postagens: ele defende a predominância das classes mais abastadas na condução da política e do país: “Os pobres  são despreparados, tem sangue muito misturado e, mesmo frequentando ambientes como o nosso, não conseguem perceber nossa superioridade”. Nos tempos do sítio, ele torcia o nariz para alguns amigos e parentes que estavam sempre lá, mas nunca se manifestou abertamente a respeito.

Depois que nos reencontramos no Facebook, ele me fez uma visita em casa para lembrar dos ‘velhos tempos’. Tentei argumentar com as ideias que ele divulgava em sua página. À medida em que eu discorria sobre posturas políticas ou situações econômicas vivenciadas pela população em geral e não pelo percentual mínimo que aplicava em Bolsa ou especulava em dólar, ele se mostrava mais irritado: ‘eu conheço esta gentinha toda, cara… É a minha freguesia há mais de 20 anos! Só sabe chorar! E fazer filho! E tomar cachaça no fim de semana! E reclamar, reclamar, reclamar… Que não tem médico no posto, que não tem guarda na rua, que só tem ônibus quebrado…! Imagina! Uma cidade do tamaninho daquela e os caras querem andar de ônibus pra ir até o centro! Pra fazer o quê? Ficar coçando o saco nos bancos da praça? Pedindo dinheiro pra quem tá trabalhando?’

Eu mandei de volta: ‘Cara, você acabou de dizer… É a sua freguesia! Se eles não trabalhassem, não te pagavam! É deles que você está ganhando dinheiro para viver, ter sua casa, seu carro, sustentar os filhos…’ E ele: ‘E daí, p..ra*! Eu ganho meu dinheiro com o meu trabalho. Não devo nada a ninguém. Abro a mercearia às 07 horas da manhã e ralo a bunda no caixa até às 08 horas da noite! Eu trabalho, cara! Pago meus impostos (???), não me meto na vida de ninguém, assisto  missa todo domingo, ajudo as obras de caridade da Igreja, sou fiel à minha santa esposa (nos tempos do sítio, eu sabia que não era!) E tenho o direito de não gostar dessa gentinha, não tenho? Ainda mais depois que aquele ladrão safado do Lula virou presidente! O cara não sabe nem falar inglês, p..ra*! E virou presidente pra empinar o nariz  dessa gentinha, fazer essa massa estúpida arrotar poderes que nunca teve?’

Desisti de discutir com ele. Mudei de assunto, relembrei boas histórias do passado, perguntei sobre a cidade, que tinha se desenvolvido um pouco mais. Mas continuei lendo seus posts no Facebook, pois me interesso, mesmo aposentado do Jornalismo, em saber como pensam todos, partidários e adversários das minhas ideias. Seu fanatismo com o novo governo está num crescendo. Quando o filho do presidente eleito disse que  o país precisava considerar movimentos como o MST como terrorismo, não vendo qualquer problema em, se fosse preciso, prender 100 mil terroristas, ele escreveu um post convocando ‘as pessoas de bem’ a fazer ‘vaquinhas’ arrecadando recursos  para construir prisões políticas no país.

O último post que li dele foi elogiando a atitude do futuro presidente por ter acabado com o Programa Mais Médicos, uma ‘força comunista que o petismo introduziu no Brasil e que estava ensinando o povinho a exigir cada vez mais dinheiro do governo federal…!’ Uma de suas leitoras contestou a afirmação dele, explicando que na cidade natal dela, no interior da Bahia, antes do Mais Médicos, as pessoas tinham que viajar quase 80 km para serem atendidas num posto médico… E ele foi definitivo: ‘Desculpe-minha querida, mas esta gente do interior está acostumada a se tratar com mezinhas, chazinhos e sempre tem um farmacêutico para receitar pomadas e comprimidos… Pra quê médico?’

Parei de ler seus posts… Esta nova onda que tomou conta do Brasil me faz mal!

  1. Quem se interessar, vale a pena assistir o filme ‘A Onda’ na íntegra. Ele está no YouTube: https://www.youtube.com/results?search_query=a+onda+filme+completo+dublado+1981

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *