Tudo dentro da normalidade…

Apesar de aposentado há 16 anos, eu continuo um jornalista da velha guarda que, como já escrevi aqui algumas vezes, acredita na ética e na isenção possível  de quem informa alguma coisa à população, mesmo tendo um lado e uma posição política. Muito mais ainda agora, que o meu patrão sou eu mesmo… e não tenho que dar satisfações ao dono do jornal ou aos responsáveis pela comunicação de governo  – na ditadura ou na democracia, o governo sempre tem uma estrutura de controle da comunicação estatal – e o assessor de imprensa de uma empresa estatal tem certas limitações políticas na execução de suas funções.

Nos meus tempos de assessor de imprensa de uma empresa estatal ainda sob a ditadura, eu convivi com grandes repórteres setoristas, do Estado de São Paulo, da Folha de São Paulo, do Jornal do Brasil, do Globo, dos Diários Associados, da Veja, da Visão, da Manchete e muitos outros de veículos regionais

Mesmo havendo um choque de posições – eu defendendo a ‘minha’ empresa, eles tentando descobrir falhas da ‘minha’ empresa – havia um respeito pela veracidade do fato, pela preocupação honesta em descobrir se uma determinada denúncia tinha fundamento ou se era, simplesmente, vazia,  fruto de vingança ou descontentamento de alguém, prejudicado em seus interesses.

Nunca me esqueço de uma denúncia feita, certa vez, por um grande jornal do Paraná, relativa as maracutaias  existentes em um armazém do Estado. A grande imprensa veio em cima… o presidente da empresa precisava declarar alguma coisa, o diretor de operações, responsável pelas unidades armazenadoras, tinha de desmentir… ou não! Ainda era um governo ditatorial e os controles governamentais diziam que não era possível existir corrupção em nenhum setor do governo.

Como conciliar uma ordem ‘de cima’ com um compromisso ético de informar a verdade? Num primeiro momento, eu pedi ao presidente da empresa, e ele concordou, em dar uma entrevista coletiva e informar que a inspetoria da empresa (que era chefiada por um coronel da reserva) estava investigando a denúncia e prometer que o relatório dos inspetores seria aberto à Imprensa tão logo ele lhe fosse entregue.

A inspeção foi realizada e a maracutaia foi constatada. Discretamente, o gerente foi afastado (o processo administrativo era longo, e só depois haveria demissão) e, conforme prometido, eu distribuí o relatório da inspeção aos setoristas – afinal de contas, a maracutaia existira, mas o governo militar estava tomando as providências necessárias…  Nenhum jornal deu – segundo os editores, o assunto estava ultrapassado, havia uma outra denúncia, mais cabeluda, contra a vigilância animal no Ministério da Agricultura.

O gerente demitido acabou virando deputado estadual, depois federal, por várias legislaturas, e, apesar de condenado pelo STF, em agosto de 2018, por outras mutretas feitas como parlamentar (corrupção e lavagem de dinheiro), a 13 anos, 9 meses e 10 dias de prisão, continua livre, leve e solto… e bem conceituado em sua comunidade, que votará nele ou em um indicado por ele, que não pode ser um dos filhos, que também foram condenados no mesmo processo, porque é ele que consegue benefícios para sua região.

Isso quer dizer que a democracia não funciona?

Não! Significa, apenas, que um país não consegue manter sua democracia se ele tem uma distribuição de renda tão absurdamente desigual como o Brasil tem… E distribuição de renda significa educação igual para todos, do filho da lavadeira à filha do médico, da perspectiva igual para a filha do juiz e do frentista do posto de gasolina chegar à universidade, seja pública, seja através do PROUNI.

Um país não consegue manter sua democracia quando quem ganha 05 salários mínimos por mês (+/- R$5.000,00) tem o mesmo desconto de imposto de renda (27,5%) de que alguém que ganha 100 salários mínimos (+/- R$100.000,00) e que, se for empresário, pode jogar este imposto para a empresa… que recebe incentivos fiscais do governo!

Um país não consegue manter sua democracia quando 06 famílias dominam os meios de comunicação de massa e transformam a liberdade de imprensa em um mantra para permanecerem formadoras privilegiadas da opinião de um país, sendo donas absolutas de um negócio comercial, que rende milhões e milhões de reais, dinheiro suficiente para, se houver algum problema mais sério, se mudarem para Miami e continuarem vivendo como nababos…

Um país não consegue manter sua democracia quando, em números de 2016 (com a avalanche de desempregados, estes números pioraram em 2018), as 890 mil pessoas mais bem remuneradas do país, que ganhavam, em média, R$27 mil por mês, recebiam 36 vezes mais que metade da nossa força de trabalho, 44,5 milhões de brasileiros, cujos salários mensais atingiam R$747,00, em média.

Na base do jeitinho, porém, a gente ia levando esta democracia a caminho de uma consolidação efetiva: em 30 anos, a euforia democrática pós-ditadura conseguiu aprovar uma Constituição Cidadã, o liberalismo peessedebista passou pelo governo privatizando riquezas nacionais e não tentou removê-la ou subvertê-la, o esquerdismo petista passou pelo governo e não tentou amoldá-la ou sabotá-la e, até, uma quadrilha assumiu o governo, servindo-se dela para não ser impichada e presa (até agora!)

Winston Churchill, o grande estadista conservador da Grã-Bretanha, que enfrentou e venceu Hitler, disse, certa vez, que “a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas.” E o que é democracia? As pessoas costumam associar democracia à existência de eleições para governantes e legisladores. Mas, há eleições em Cuba e na Coréia do Norte, que tem partidos únicos… E havia eleições no Brasil durante a ditadura. Na verdade, eleições podem mascarar um regime autoritário, que precisa de legitimação internacional para sobreviver.

Nós acabamos de passar por um processo eleitoral que as instituições brasileiras insistem em afirmar que foi absolutamente normal. Do ponto de vista formal, realmente foi: as urnas eletrônicas foram distribuídas a tempo e hora, os juízes eleitorais estavam presentes nas zonas eleitorais, os mesários seguiram as instruções emanadas da Justiça Eleitoral, os eleitores, com as exceções de praxe, se comportaram adequadamente,  a apuração se deu em tempo recorde…

A influência que as redes sociais tiveram – e tiveram muita influência – sobre o resultado das eleições tem a ver com os eleitores, não com a Justiça Eleitoral… apesar da Polícia Federal estar apurando o ‘financiamento empresarial’ a determinadas redes sociais, o que é legalmente proibido. Mas, com o presidente já eleito, quem é que ainda vali ligar para isto, não é mesmo?

A presidenta do TSE diz que não houve qualquer falha da Justiça Eleitoral na condução do processo, e o ministro da Casa Militar escapa da pergunta sobre apoio empresarial eleitoralmente ilegal à uma candidatura, dizendo que não há porque condenar uma rede social como o Whats’App, que presta tantos serviços às comunidades, só porque é mal utilizada por algumas pessoas, como tudo na vida!

O deputado federal eleito com a maior votação do país, filho do presidente eleito, antes de isto se efetivar, aparece em vídeo dizendo que “não precisa nem do jipe, basta um cabo e um soldado para fechar o STF…” E a mesma ministra, perguntada, responde: “Embora não sendo presidente do STF, e sim do TSE, no Brasil, as instituições estão funcionando normalmente e todos os juízes honram a toga e não se deixam abalar por qualquer manifestação que eventualmente possa ser compreendida como de todo inadequada.”

O presidente eleito convida o juiz de 1ª instância que, baseado em delações premiadas e sem apresentar provas concretas, condenou seu principal adversário na disputa presidencial à prisão, onde ele se encontra, impedindo-o de participar da eleição, e o incensado juiz aceita numa boa ser Ministro da Justiça e Segurança, sob aplauso frenético de outro juiz da Suprema Corte, o mesmo que está sentado há mais de dois anos em cima de um processo que julga a validade ou não do auxílio-moradia de juízes, penduricalho este que é recebido, sem rubor, pelo futuro ministro.

Um juiz, aliás, que é idolatrado pelo trabalho ‘exemplar’ de caça aos corruptos, mas que não se constrange com o fato de conviver, a partir de janeiro, com outro futuro ministro que confessou publicamente atos corruptos (recebimento de caixa 2 para bancar sua campanha eleitoral) e ser comandado por um presidente que tem uma série de denúncias pequenas e grandes de corrupção em seu currículo…

Realmente, está tudo dentro da mais santa normalidade… Como 2 e 2 são 5!

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