As alcoviteiras de Curral do Meio

Curral do Meio é uma pequena cidade do norte do meu Estado natal, sem qualquer importância maior para o país. Era um lugarejo que servia de ponto de descanso das boiadas que vinham do norte, a caminho dos abatedouros. Cercada por fazendas de gado, tinha meia dúzia de casas de um lado da estrada e uma dúzia do outro, além de um imenso cercado, onde as boiadas eram acolhidas durante a dormida dos vaqueiros.

A estrada se tornou uma avenida quando muita gente começou a procurar as praias dos Estados vizinhos. O asfalto ia até uma cidade maior, vizinha, havendo outros 58 quilômetros de terra bem batida até chegar na BR-116, asfaltada, um caminho bem mais curto para as maravilhosas praias tão desejadas.

O povoado cresceu, virou vila e, por causa da política, acabou se tornando uma cidade, com prefeito, Câmara de Vereadores, três igrejas, católica, adventista e pentecostal, e um posto de gasolina, além dos currais, que foram afastados da avenida principal, mas continuaram sendo o principal esteio econômico do município, além das verbas federais e estaduais a que tinha direito por lei. A nova rodovia asfaltada para as praias não passou por lá, ficou há menos de 05 quilômetros, e Curral do Meio continuou sendo apenas parada das boiadas vindas do norte.

Eu passei por Curral do Meio algumas vezes, a caminho das praias. Parei apenas uma vez, num boteco, porque minha filha estava com sede. Exatamente por isso, fiquei embasbacado quando um velho amigo me contou a história das alcoviteiras de Curral do Meio. Meu amigo é representante de uma fábrica de biscoitos e percorre o norte do Estado apresentando e “colocando” seus produtos que, segundo ele, tem boa aceitação em cidades menores, exatamente por terem preço menor. Contou-me ele:

Depois de negociar seus produtos em Taiobeiras, cidade maior, com mais vendas, bares e mercearias, ele chegou a Curral do Meio no domingo à tarde, se hospedando no único hotel de lá. Ao contrário de qualquer cidade pequena do Interior, que parece morta numa tarde de domingo, a praça da Matriz estava entupida de gente. Havia várias rodinhas, muita gente transitando de uma para outra. Na porta da igreja, um padre alto, com aquela tradicional batina preta, parecia tentar acalmar algumas senhoras. Havia, óbvio, alguma coisa no ar…

Como andava sempre pela região e conhecia o recepcionista do hotel, perguntei-lhe  o que estava acontecendo, e o rapaz foi misterioso: ‘Zé Quirino (o bêbado da cidade) passou pela avenida ontem, gritando que a polícia estava vindo para cá… Ninguém entendeu direito, Zé Quirino é doido mas, depois que dona Eufrásia interrogou ele na porta da igreja, ficou todo mundo agitado.  Disse ela, o que foi confirmado pelas outras beatas, que a Polícia Militar estava vindo para caçar os comunistas, traidores da Pátria-Mãe.’

Deixei minha mochila no quarto e fui  xeretar na praça. Na parte frontal à igreja, mais para o lado direito da praça, tem uma espécie de coreto moderno, um tablado redondo cercado de umas arquibancadas de pedra. Todos os grandes eventos da cidade acontecem ali, desde comício político até shows de bandas que rodam pelo Interior. No calçadão ao lado, numa posição estratégica para quem quer ver o que está acontecendo no coreto, tomando cerveja gelada e beliscando a linguicinha tradicional da região, fica o Bar do Gegê, um comprador tradicional dos meus produtos, para onde fui. Puxei um banquinho e sentei junto ao balcão, sob o repentino silêncio e os olhares desconfiados dos demais fregueses… O dono do bar abriu um sorriso e falando alto para tranquilizar os demais, brincou:

— Ele não é polícia não, gente… É amigo da casa! Uma cerveja, meu velho?

— Que história é esta, sêo Geraldo, comunistas por aqui?

— Uai! Você não tem ouvido as notícias, não?  O governo criou uma Força Especial para investigar e prender quem faz manifesto contra ele…

— Mas isto nunca vai chegar ao interiorzão, sêo Geraldo… Isto é só pra capitais e grandes cidades, em que tem havido passeatas, greves generalizadas. Aqui em Curral do Meio não tem dessas coisas não!

 

— Tem sim… – um jovem de cabelo escovinha, sentado junto com outros jovens, se levantou e se aproximou de nós, falando alto: … sêo Izidro, da farmácia, é comunista! Eu nunca vi ele na missa! E o Jurandir, também! Acho que a gente devia prender eles duma vez… não ficar esperando a polícia, não…!

— Não banque o machão, Zizico… É comunista só porque não vai à missa? É comunista só porque trouxe uma motocicleta vermelha e usa capacete vermelho? — Os amigos começaram a se exaltar e sêo Geraldo foi taxativo:

— Sossegue, moçada… O prefeito vai falar daqui a pouco. Se quiserem arruaça, podem ir pagando a conta e caiam fora! E não vou pendurar não, ‘tá certo?

O grupo murchou, sêo Geraldo me deu uma piscada e se aproximou, trazendo outra cerveja e um copo.

— Esta é minha. A coisa está agitada, meu velho… Está correndo pela cidade que um grupo apareceu na Fazenda Três Pontas, sequestrou Chico da Foice, um dos primeiros filhos da região que foi trabalhar nos canaviais de São Paulo. Passou anos lá, e quando voltou, veio com umas ideias esquisitas sobre direitos dos peões, estas coisas de comunista. Eu acho que é o único que tem por aqui, mas já está velho demais para fazer alguma coisa além de falar!

— Sequestraram um velho, pô! A violência está crescendo pra todo lado! – um senhor da minha idade se chegou até nós e me foi apresentado como um agrônomo de Montes Claros que estava fazendo um trabalho para uma empresa multinacional em toda a região.

— Desculpe a intromissão… Posso? Me disseram que ele foi encontrado na beirada do açude, mais morto que vivo, e foi levado pro hospital de Salinas. O prefeito deve dizer mais… Desculpe, Gegê… eu estou aqui há uns 08 meses e não entendi esta história das beatas.

— Bom… Eu já ando por aqui há uns 03 anos e acho que já entendi. Curral do Meio é uma durante 10 meses por ano, de fevereiro a novembro, e outra em 02 meses, dezembro e janeiro. Nestes dois meses, os filhos dos fazendeiros, que estudam em Belo Horizonte, São Paulo, Rio ou Brasília, e os pais e filhos da terra, que trabalham principalmente nos canaviais de São Paulo, voltam para casa. Os primeiros com seus carrões e namoradas vistosas, os segundos com suas motos envenenadas. Costumam viver em harmonia, velhos amigos de infância se encontrando nos botecos e nas festas da igreja e particulares. Parece que este ano haverá uma divisão…

— Isto eu percebi logo que cheguei aqui, no começo do ano… Não entendi as beatas…!

— As fazendas, dos ricos, e as famílias urbanas, da burguesia, possuem tevê, Internet, comunicação com o país e o mundo… Os peões, trabalhadores rurais perdidos na lida com a boiada, e os empregadinhos urbanos, crentes num Deus Todo Poderoso que vê e resolve tudo, não. Ou seja, as informações chegam até eles na base do boca a boca… E as beatas, para isto, são insubstituíveis!

— Você quer dizer que elas são uma antiga versão das atuais ‘fake news’?

— É… Pode-se dizer que é isto mesmo! Não acha, sêo Geraldo?

— Não sei! Por isso que o prefeito tá vindo falar pro povo na praça. Para explicar os avisos  do Zé Quirino pela avenida ontem e dizer o que aconteceu com o Chico da Foice, antes que estes merdinhas aí comecem a atacar outras pessoas na cidade. Acho que ele deve dar um puxão de orelhas no padre, também! Que as beatas dele, umas fofoqueiras de merda, é que espalharam esta história da polícia tá vindo prender traidor… Traidor… pois sim! Curral do Meio deu 90% de votos pro presidente! Os coronéis não deixaram um peão sair das fazendas… Que eu saiba, só a cidade votou… a zona rural nem apareceu!

De repente, baixou um silêncio na praça. O prefeito tinha chegado ao coreto e alguém estava pedindo silêncio à multidão concentrada na praça.  Em cima do tablado, o prefeito bateu palmas e pediu silêncio de novo – o som era retransmitido pelos alto falantes da igreja – e, pouco a pouco, o silêncio se fez.

— Minha gente! Vocês demonstraram confiança em mim ao me elegerem há dois anos prefeito desta progressista cidade de Curral do Meio, onde meus avós chegaram e se transformaram  em grandes benfeitores da comunidade. Esta comunidade ordeira e trabalhadora está passando por um  momento de crise, que ela própria, com serenidade e paz, tem capacidade de resolver. Nós não somos um povo radical… Nós não queremos que a falta de informação instale a desconfiança entre as pessoas de bem, nós não queremos que palavras gritadas ao vento por um desorientado pela bebida se transformem em uma caça às bruxas, algo que nós não temos entre nós – alguns aplausos o interromperam…

— A Polícia Especial, em boa hora criada pela sabedoria de nosso governo maior, não está vindo para Curral do Meio! – a multidão soltou um óóóhhhh! O prefeito aguardou o burburinho se acalmar e continuou:  duas viaturas da Polícia Militar estavam ontem na rodovia por causa de um acidente de moto que, infelizmente, foi fatal para o motoqueiro, que não é da região… Zé Quirino, que não conseguiu chegar em casa, como acontece muitas vezes, dormiu na grutinha, perto do acidente…  Dona Eufrásia, esta santa que vela pela cidade, entendeu errado – ele olhou firme para o padre, que estava a seu lado, e balançou a cabeça positivamente – que falou com dona Maria da Paz e dona Tiana de Jesus, que se apressaram a alertar a cidade de um fato que não correspondia à realidade – a multidão soltou outro óóóhhhh!

— Minha gente! Nós não temos traidores em nossa comunidade… Somos um povo pacífico, ordeiro, amante da paz, crente em Deus – olhou firme de novo para o padre, que balançou a cabeça positivamente de novo. – Não há qualquer razão para que os jovens, cheios de energia patriótica, saiam às ruas procurando chifres onde eles não existem. O delegado João Roberto, de Salinas, está chegando amanhã em Curral do Meio, para descobrir quem que sequestrou e bateu em Chico da Foice, que está bem machucado no hospital, mas está vivo, graças a Deus. A lei não terá contemplação com quem passar por cima dela… Até mesmo daqueles que espalharem boatos maldosos e mentirosos… Nossas autoridades não permitirão isto! Agora, vão para casa e aproveitem o resto do domingo para descansar e orar a Deus. Que Ele, em Sua infinita sabedoria, traga tranquilidade para nossa cidade! – muita gente aplaudiu, muita gente disse amém e ouvi até uns gritos de Viva o Prefeito…! E, vagarosamente, a multidão foi se dispersando.

No bar, ficamos eu, o agrônomo e sêo Geraldo, além de um casalzinho perdido em seu namoro, numa mesinha longe de nós. O prefeito desceu do tablado, conversou com um e com outro, deu e recebeu tapinhas nas costas e caminhou para o bar, acompanhado por um rapaz, certamente seu filho, porque era a cara dele, e pelo padre.

— Gegê! Me dá uma daquela do garrafão verde… — Olhou para nós, cumprimentou o agrônomo e perguntou se éramos servidos. Sêo Geraldo pegou o garrafão e encheu 05 copinhos… olhou pro padre, que negou com a cabeça. Todos nós derrubamos um golinho pro santo e viramos os copinhos duma vez.

O prefeito pediu outra:

— Gegê, você que é mais velho que a cidade, explica aqui pro padre Antônio como é que padre Deoclécio segurava estas beatas fofoqueiras… Eu não ‘guento’ mais, gente! Antes de vir pra cá, tive que reunir a peãozada toda da fazenda e dar uma dura pra valer! ‘tava todo mundo querendo vir pra cidade pra pegar quem tinha matado Chico da Foice… e tudo por causa destas, desculpe, padre, filhas da boa senhôra, que só sabem fazer fofoca…!

O padre começou a protestar, que não era bem assim, elas apenas transmitiam o que escutavam, e o prefeito o interrompeu:

— É assim sim, padre! Zé Quirino gritou pelas ruas que ‘tem polícia lá atrás com um morto na pista!’ E elas espalham que ‘vem polícia atrás dos comunistas…?’ Isto é terrorismo puro, tremenda sacanagem, padre!

— Ele botava elas de castigo, padre. Cada vez que uma fofoca aparecia na cidade, ele chamava as três para uma confissão e, invariavelmente, botava as três pra rezar um monte de  ave marias e padre nossos a cada vez que a língua delas coçasse… Acho que nunca rezaram tanto na vida!

Todos rimos da história, inclusive o padre. A conversa continuou solta, o prefeito trocou a pinga pela cerveja, sêo Geraldo preparou alguns petiscos e lá ficamos nós proseando aquelas conversas boas de mineiro em boteco. O prefeito era novo ainda, filho de família tradicional, que fora estudar na capital, voltara advogado e entrara na política. Dentro dos padrões, fazia uma boa gestão. O padre era recente na paróquia, já era o terceiro substituto do padre Deoclécio, que fora aposentado compulsoriamente pela Igreja, já meio gagá.

Ele ficara apavorado com a violência repentina que tomara conta daquela cidadezinha perdida no sertão, tão pacata e sossegada que dava até preguiça de rezar missa.

— O Brasil ‘tá’ meio perdido… – disse ele, a certa altura – Mas Deus há de olhar por nós e não permitirá que o desamor, o ódio, a vingança prevaleçam… Vamos todos dar as mãos e rogar pela sua bênção…

— Isto passa, padre… Nada aqui dura muito tempo. É que nem febre! — disse o prefeito – o senhor precisa só controlar suas beatas… E tudo volta à paz do Senhor!

Todos concordamos… viramos os copos e pedimos outra cerveja!

 

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