Recordações da minha pátria morta (III/III)

Não tenho arrependimentos maiores por ter fugido. Minha única filha residente no Brasil é casada com um oficial da Aeronáutica… Não corre qualquer risco. Parte dos parentes votou no Coiso ou se omitiu… e não se envolve com política, estando protegida, portanto, de perseguições ou prisões ordenadas pelo Estado. Os que se envolveram na disputa foram incomodados durante algum tempo e são monitorados até hoje, mas não foram presos. Os que se mostraram renitentes, também conseguiram sair do país.

Ainda no governo do Coiso e por minha causa, alguns amigos passaram a receber ameaças anônimas pelas redes sociais, mas nunca chegaram às vias de fato. E isto acabou depois que os militares assumiram o poder. O ‘perigoso’, na avaliação deles, sou eu, e eu estou longe, asilado noutro país, não representando perigo para o governo, mesmo com um blog ativo nas redes sociais, mas que atinge pouca gente no país, conforme monitoramento diuturno que o setor tecnológico do Exército faz. Aliás, ele é um excelente instrumento para saber quem são as pessoas que ainda carregam o germe da resistência…

Na verdade, meus leitores no Brasil não se importam muito com isto. Segundo uma velha amiga, monitoramento das pessoas se tornou uma rotina na vida brasileira: qualquer pessoa, a qualquer hora, em qualquer lugar, pode ser parada por uma patrulha militar, que pede documentos, pergunta onde ela está indo àquela hora, com quem vai se encontrar, o que vai fazer. Ás vezes, a pessoa é ‘recolhida’ para averiguações mas, normalmente, está de volta após duas ou três horas.

Disse-me ela que a preocupação maior das ‘autoridades’ agora, é com a quantidade de jovens que vem portando armas nas escolas. “Fica difícil para a ditadura – explicou ela -considerar um erro do presidente deposto ter forçado a revogação da Lei do Desarmamento, exatamente porque foi a partir dela que os militares, bem como cidadãos de bem, tiveram liberdade para matar bandidos e traficantes sem qualquer cobrança da Justiça. Mas, vão ter que fazer alguma coisa, muitos professores já abandonaram as escolas, e a substituição deles pelos próprios militares, está desagradando o Alto Comando.”

Outra coisa que está incomodando os militares é que, durante o curto governo do Coiso, o Congresso, por ‘livre e espontânea vontade’ e atendendo um ‘pedido’ especial do presidente da Câmara, Kim Kataguiri, criou a Medalha do Mérito Patriótico Coronel Ustra, a ser entregue a todos os patriotas, militares ou civis, que prendessem ou matassem comunistas ateus, notórios ou não, que, comprovadamente ou não, estivessem conspirando contra a Pátria Mãe. O Alto Comando acha que o Coronel Ustra, apesar de ter executado um trabalho necessário na Revolução de 1964, não tem muita aceitação da sociedade brasileira, basicamente pelo trabalho revisionista feito pelos comunistas da tal Comissão da Verdade no período pós Constituição de 1988. Mas, ao mesmo tempo, seria contraproducente revogar uma decisão da Câmara, aprovada para atender o desejo do ex presidente, que ainda significava muito para os apoiadores dele e que, apesar da deposição, continuam apoiando o novo governo.+

Mas, o maior enrosco do governo militar foi o inesperado pedido de asilo feito pelo juiz Moro, para ele e sua família, ao consulado dos Estados Unidos em Porto Alegre. O Alto Comando não tinha a menor ideia da causa do pedido e ficou estupefato quando os Estados Unidos não só concederam o asilo, como divulgaram as razões para fazê-lo. Segundo o juiz, ele estava sendo ameaçado por ‘forças ocultas’ de setores ditos nacionalistas, que o acusavam de ser um traidor da Pátria Mãe. Investigações posteriores da ABIN confirmaram tais ameaças, que também se estenderam a alguns membros da velha Força Tarefa da Lava Jato.

Segundo elas, as investigações, tais forças haviam recebido documentos secretos de hackers internacionais, provavelmente russos, que provavam que a Operação Lava Jato foi inteiramente montada por departamentos do governo americano, com o objetivo explícito de eliminar uma certa preponderância política e econômica que o Brasil obtivera sobre as empresas americanas e multinacionais em países da África, América do Sul e Oriente Médio.

Com isso, focando em cima da corrupção, que sempre foi endêmica no Brasil, as sucessivas operações policiais, irradiadas a partir da Lava Jato, conseguiram desmontar operações comerciais da Petrobras, de empreiteiras, de indústrias frigoríficas e, até, de empresas exportadoras para estas regiões, reabrindo espaços para as americanas. No caso da Petrobras, o ataque foi ainda maior: a Lava Jato abriu as portas para que vários países e grupos de acionistas estrangeiros entrassem com ações de danos na Justiça, enfraquecendo de tal forma a empresa que ela se viu obrigada a vender grandes áreas do pré-sal para as petrolíferas multinacionais.

Estes grupos nacionalistas, muitos dos quais incrustados nas Forças Armadas, estavam considerando estas operações tocadas por procuradores, policiais federais e juízes de 1ª instância como atos de traição, e a atitude intempestiva do juiz Moro irritou o Alto Comando Militar, que instaurou um IPM – Inquérito Policial Militar, para investigar a fundo o assunto, dando ordens claras e objetivas de que até o seu encerramento, procuradores, policiais federais, juízes e quaisquer outros envolvidos naquelas operações, estariam sob diuturno monitoramento, não devendo deixar suas cidades de residência ou trabalho sob pena de prisão.

Eu já vivi uma situação semelhante a esta no Brasil. Daquela vez, eu virei gente, terminei o ginasial, comecei a trabalhar, fiz faculdade, me formei, me profissionalizei, me casei, tive duas filhas, me separei… Foram 21 anos sob uma ditadura militar, que teve muito apoio da classe média para ser instaurada, a aprovação envergonhada e, em muitos casos, entusiasmada,  de boa parte da classe política e do poder econômico e a omissão generalizada da população, preocupada em sobreviver o dia a dia. Nada diferente dos dias que hoje correm.

Lutei com minha arma, uma caneta no início, um computador depois, contra isto, durante estes 21 anos, e continuei lutando até há poucos meses para implantar e consolidar uma democracia que, mesmo com suas falhas e contradições, permitisse ao Brasil se tornar uma nação economicamente viável, socialmente justa e desprovida de preconceitos de qualquer natureza. Dia 28 de outubro último, o brasileiro preferiu, de novo, uma ditadura. Eu perdi. E saí do país, mas não de cena… A luta continua…

 

 

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