Recordações da minha pátria morta (I/III)

Eu não posso reclamar da vida que eu levo hoje. É uma vida bastante solitária, mas o chalé é confortável, a praia é linda e, na maior parte do ano, fica vazia de turistas, me permitindo longas caminhadas  quando o sol começa a despontar. Consegui até parar de beber minha cachaça pré-almoço, um vício adquirido nos últimos 03 anos (as duas doses diárias de uísque, no inicio da noite,  continuo tomando, mas isto funciona como remédio para dormir).

Até os turistas, na alta temporada, tornam-se interessantes: a maioria vem da famosa América profunda, adoradores de Trump e sua ‘America’s first’, que eles consideram, neste caso, as terras que vão da Patagônia até o Alaska; num castelhano atroz, misturado com um inglês primário, a gente consegue se fazer entender, principalmente porque eu os ensino a pedir comida sem ‘chili’, apenas com ketchup… E porque eu gosto e bebo uísque, que eles acham que é uma bebida inventada pelos cowboys na época da conquista do Oeste! E tem muita turista disposta a conhecer os segredos de um latino americano… Eu nunca disse que era o Cialis, claro! Digo, apenas, que sou um idoso que já foi um rapaz latino americano…

Consegui estabelecer uma rotina de vida exemplar: a caminhada matinal, o banho de mar, uma chuveirada quente e duas horas à frente do computador, escrevendo. Outra caminhadinha curta até o bar da Pilar, a comida sem pimenta que ela faz especialmente para mim, acompanhada de uma taça de mojito cubano, com açúcar substituído por aspartame, outra caminhadinha pela vila, dando oi para uns e outras e a volta para casa, com mais duas horas de digitação. O primeiro livro saiu quando eu ainda estava no Brasil, fez um sucesso imediato, mas aí foi proibido, não pela história em si, que não é política, mas pela autoria, eu, por causa do blog, que continuou sendo político mesmo depois da eleição do Coiso e, evidentemente, contra ele! Seus apoiadores não aceitaram isto, claro!

Eles não duraram muito, o blog e o Coiso, mas o blog eu consegui reviver depois que vim para cá e, com a ajuda de uma filha, os textos agora saem em português, castelhano e inglês, o que aumentou bastante seus seguidores. E o livro continua vendendo, não no Brasil, onde está proibida sua edição, mas nos países de língua portuguesa e, mais recentemente, nos de língua hispânica.

A censura tem algumas vantagens! Tanto que meu compromisso com a editora é entregar outro livro até o meio do próximo ano. Acho que consigo… Outras filhas estão adaptando o Capão das Beatas para o mercado americano e negociando sua edição por lá, e a perspectiva futura é positiva… Ou seja, problemas financeiros não existirão até a morte, mesmo que os proventos de aposentadoria no Brasil continuem congelados  aos valores de 2018 e as reformas previdenciárias implementadas continuem apressando a morte dos aposentados que permaneceram por lá.

Numa reportagem recente do New York Times, li que 26 aposentados da antiga classe média haviam se suicidado no último mês. É muito triste mas, pelo menos, os de classe baixa não entram nessa: viveram com tão pouco a vida toda que os apertos de hoje não afetam muito. Mas implicam em outro problema: como o Bolsa Família foi reduzido ao ‘mínimo minimorum’, os velhinhos e velhinhas não estão conseguindo manter suas famílias em casa, e a migração interna, de várias regiões do país com destino às grandes metrópoles ,  onde ainda é possível batalhar por um emprego ou vender bugigangas nas praças, avenidas e rodovias ou, o que a maioria consegue, trabalhar para o tráfico, garante o sustento, potencializou-se.

A taxa de crescimento demográfico de São Paulo, que tinha sido de 0,56% em 2017, com viés de baixa, saltou para 0,62% nos 09 meses de 2019, segundo outra reportagem que eu li no ‘El País’.

As favelas e periferias do Rio, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza, Porto Alegre e até de Macapá, que conseguiu devolver os venezuelanos para o país deles e fechar as fronteiras, se tornaram uma fonte permanente de substituição de mão de obra para as organizações criminosas, que sofreram um grande impacto inicial com a revogação da Lei do Desarmamento e a massiva compra de armas pela população. Ladrõezinhos, assaltantes pés de chinelo, aviões do tráfico, e  inocentes, infelizmente, passaram a ser mortos aos magotes… e sem qualquer punição! A nova Lei do Direito de Defesa do Cidadão de Bem garantia isto…!

Infelizmente para o país, para a população ordeira e para o governo, os mortos eram substituídos rapidamente por quem tentava sobreviver. Ou seja: o tráfico continuou de vento me popa! Sem reclamações, por favor! A taxa de homicídio quase duplicou, mas a população não sabe disso, porque os dados não são divulgados, além do que há uma sensação inusitada de segurança. As tevês foram proibidas de noticiar qualquer coisa sobre guerras entre gangues, violência policial contra moradores de morros e periferias, troca de tiros, balas perdidas… só noticiam o patrulhamento cortês e eficaz dos militares e as mortes de chefões e chefetes do tráfico, elogiando, naturalmente, a ação dos soldados brasileiros na proteção de famílias e crianças e no combate ao crime organizado!

A verdade é que, ao contrário de boa parte dos brasileiros comuns, eu previ o que significaria a eleição de um fascista ignorante para a Presidência da República. Explico: em todas os regimes políticos, existem preceitos filosóficos que embasam a teoria aplicada ao regime. O comunismo tem, o nazismo tem, o fascismo tem, a democracia também tem. Filosoficamente, o Coiso sempre foi um zero à esquerda.

Na verdade, ele começara sua vida política há 30 anos atrás defendendo valores caros aos militares saudosos da ditadura, criando um nicho de apoiadores fiéis, que o elegeram seguidamente, bem como, depois, os três filhos.  Manteve sempre uma postura fascistóide – dando voz à direita mais radical, racista, homofóbica, anti feminista, nacionalista, autoritária, e pregando os valores sagrados da família tradicional e que todo poder advém de Deus –   surfando, agora, numa onda conservadora nascida com a crise econômica de 2008, que atinge boa parte do mundo e que, no Brasil, se fortaleceu a partir do sentimento anti petista da classe média, do inconformismo da elite e do fanatismo neo pentecostal, catapultando-o para a Presidência.

Eleito, tinha que implementar o programa conservador vendido na campanha. E, para fazer isto, o caminho era impor… Autoritarismo puro, policiais e militares em quaisquer protestos, reuniões políticas, peças de teatro libertárias, leis docilmente aprovadas por parlamentares acoelhados, reduzindo os direitos civis constitucionalmente estabelecidos.

Eu já vivera isto na época da ditadura dos milicos, que durara de 1964 a 1985, ou seja, dos meus 16 aos 37 anos… E, logo após, dos 40 aos 42, a falsa ilusão de um governo honesto, patriótico, desenvolvimentista e popular, baseado num marketing barato de frases em camisetas vestidas pelo presidente em suas caminhadas ‘públicas’, e nos noticiários laudatórios das tevês… (fico imaginando se houvesse Whats’App naquela época… Collor ainda seria presidente!)

Antes do Coiso ser eleito, eu tinha apenas uma dúvida: se ele se tornaria uma rainha da Inglaterra ou se seria defenestrado do poder em pouco tempo. Sua capacidade de se candidatar à Presidência da República se baseou, apenas, no que ele podia representar de antipetismo, de antidemocrático, de anti qualquer coisa que estava ali até então. Com a capilaridade dada pelas redes sociais hoje, me impactou bastante não a quantidade de posts que eu recebia nos meus grupos pessoais de Whats’App, mas a quantidade de fake news que era repassada sem qualquer checagem, por pessoas que, sem algum vínculo político, acreditavam nos posts recebidos e, sem qualquer preocupação com a verdade, retransmitiam os posts para seus próprios grupos.

Antes do 2° turno, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem denunciando o pagamento, por empresários, de milhões de postagens robotizadas pelo Whats’Apps contra o candidato Haddad e seu partido, o PT, e a favor do candidato Bolsonaro e sua pregação fascista. Crime eleitoral dos bravos! Mas a Rosa Laquê… ada  vacilou e não tomou as providências legais que deveria. E a fraude venceu, sem contestação judicial. E, logo depois da derrubada do presidente fraudulosamente eleito, a elegante senhôra renunciou. Dizem que passa metade do dia sentada em frente o espelho tentando armar sua cabeleira, sussurrando: há mulher mais bem penteada que eu?

O fato concreto é que o Coiso foi eleito presidente do Brasil. Entre 29 de outubro e 31 de dezembro, com direito a pausa na semana de Natal, houve uma espécie de caça às bruxas em todo o país: Marielle virou p…* no Rio, tendo o inquérito que apurava sua morte concluído que esta aconteceu  por ciúmes de sua viúva. O cara que quebrou uma placa de rua com o nome dela, e que foi eleito deputado estadual, está propondo, inclusive, dar o nome do chefe da investigação à mesma rua, que continua sem placa.

Alguns deputados federais eleitos, antes ainda de serem empossados, pediram uma lei para condenar corruptos à morte, o que poderia atingir Lula (há dúvidas jurídicas relativas à retroação da lei), outros exigiram que a reforma da Previdência fosse aprovada ainda em 2018, antes da posse do novo ‘Duce’, o que aconteceu, e, como FHC, Ciro Gomes, Marina e outros medalhões políticos  permaneceram ‘neutros’, o Congresso, em fevereiro,  elegeu um jovem de 22 anos, Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre, financiado pelos bilionários americanos  irmãos Kock, presidente da Câmara, e a paulista Mara Gabrilli, presidente do Senado (a primeira tetraplégica a presidir um Senado no mundo! Viva o Brasil!), o que garantiu o apoio do PSDB ao novo governo. Aparentemente, os jovens que apoiaram o fascismo assumiram o poder! Não durou muito tempo! O Coiso, sem qualquer substância, foi ‘licenciado’, para cuidar de um câncer intestinal… Não voltou mais… e os milicos reassumiram o que consideravam um direito deles desde 1985! (continua)

 

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