Fato ou boato

Eu sou jornalista da velha guarda. Daquela que acredita que não há como brigar contra um fato… em qualquer área! Nos meus primeiros tempos de jornalismo, eu fui repórter –  já escrevi aqui que esta não era a minha praia mas, como estagiário, eu tinha que ser repórter – e aprendi, para decepção do meu idealismo juvenil, que a teoria (‘jornalista tem que ser ético’, jornalista tem que reportar o fato, sem tomar partido’ e coisas tais) na prática, é bem relativa.

Fosse para reportar a possível justificativa de um assaltante preso numa delegacia, fosse para cobrir a visita de um ministro da ditadura a Belo Horizonte, aquilo que eu escrevi para informar corretamente os leitores do jornal, tinha que passar pelo crivo de um editor e, às vezes, pelo do chefe de redação, porque nem sempre o fato relatado interessava aos donos do jornal, e precisava ser amenizado ou recheado de outras informações que ampliassem o contexto ou, simplesmente não noticiado.

Naqueles tempos, porém, só existia uma imprensa, totalmente diferente de hoje, onde qualquer um que disponha de um celular e navegue pelas redes sociais, torna-se ‘reportador’ de informações, sejam elas fatos ou boatos. Naqueles tempos também, existiam grandes repórteres e editores conscientes da estupidez de se brigar com um fato. Hoje, isto é raro. Desde a ditadura,  a imprensa tradicional se tornou um veículo de propaganda dos interesses políticos e patronais, enquanto a imprensa digital, que também precisa sobreviver financeiramente – não é barato manter um site na Internet – cria nichos ideológicos, cujos textos, sempre relatados de acordo com a visão desta ideologia, são avidamente consumidos e repassados por leitores comprometidos com este lado.

São raros, mas existem, claro, os que conseguem manter um padrão jornalístico independente, onde o fato é mais importante que a versão ou que a visão ideológica. Como nestes tempos bicudos que vivemos, encontrar em jornais, revistas, emissoras de rádio e tevê, sites ou blogs fatos narrados como fatos é uma dificuldade, aconselho a todos que me lêem neste blog – que também tem lado – a expandir sua leitura, quando quiserem se informar com isenção e sem um viés ideológico, a vários veículos de informação.

E, obviamente, desconfiem das certezas absolutas que viralizam nas redes sociais como se fossem fatos objetivos e comprovados. Neste período eleitoral, então, em seus grupos sociais e mesmo na sua rede familiar, o que prolifera são as badaladas fake news (mundo globalizado para um povo culturalmente analfabeto dá nisso: no meu tempo, chamavam-se boatos).  Naquele tempo, aliás, todo boato tinha um fundo de verdade, muita gente acreditava piamente… e, neste aspecto, o mundo não mudou em nada!.

Quer dizer, houve uma mudança sim, e bem significativa: a velocidade com que a notícia falsa se espalha pela população é fantástica! Exatamente porque naquele tempo, o boato era plantado num jornal e, desde que houvesse interesse do jornal em espalhá-lo, para beneficiar ou prejudicar um ou outro grupo, ele era repassado a outros veículos pelo país, podendo ou não chegar aos noticiários televisivos. Daí, a difusão boca a boca dava conta do recado e, em um tempo razoável, uma semana, dez dias, parte da população estava crente que o boato era um fato.

Com as redes sociais hoje, este ‘boca a boca’ foi elevado à quinta potência: em questão de minutos, 10 colegas de trabalho estão sabendo de uma ‘ação cabeluda’ de um gerente (que andou cobrando mais empenho de um deles), em uma hora , toda a empresa estará comentando o assunto, no dia seguinte, familiares, amigos e conhecidos do gerente estarão se perguntando como ele foi capaz de fazer aquilo (a tal ‘ação cabeluda’ que, provavelmente, nunca existiu…)

Se assim acontece nos procedimentos individuais, imaginem como é fundamental para os interesses globalizados de grupos, corporações, partidos, ideologias a difusão massiva de notícias falsas! Aquilo que eles fizeram durante muitos anos, via publicidade, facilidades comerciais, acesso ao poder, comprando o apoio nunca declarado dos meios de comunicação (sempre tão ciosos de sua “isenção”), eles continuam fazendo, claro, mas dispõem, agora, de outra arma eficientíssima, empresas especializadas em difundir notícias falsas através de robôs internéticos, usando, inclusive, poderosas plataformas como Facebook e Google.

Com isto, um boato vira fato num estalar de dedos… E como os meios de comunicação tradicional não querem ficar atrás dos fatos, mesmo que sejam boatos, eles também reproduzem a notícia falsa, o que lhe dá maior credibilidade ainda. No Brasil, então, onde ainda há muita gente que acredita naquela frase batida e rebatida ao longo de anos e anos, de que “É verdade! Eu vi no Jornal Nacional…!”, outra frase antiquíssima, de Ésquilo, passa a valer mais ainda: “Na guerra, a verdade é a primeira vítima.” E acho que todos sabem que hoje, no Brasil, nós vivemos uma guerra!

Como, então, não se deixar contaminar pelas paixões políticas? Como se segurar para não repassar um boato que favoreça seu lado ou um que desabone o outro lado? Além de ler mais, pesquisar mais, tentar descobrir a fonte (com os robôs, isto é praticamente impossível para o cidadão comum), parar de agir por impulso e repassar logo o post recebido, como evitar a inimizade eterna do amigo que pensa diferente de você?  Não há como!

A não ser que se faça como as Organizações Globo. Depois que um comentário contra a prisão de Lula, atribuído (atribuído?) ao apresentador do Bom Dia, Brasil, Chico Pinheiro, viralizou nas redes sociais, um de seus donos, o diretor editorial João Roberto Marinho, enviou um comunicado interno aos jornalistas, no qual, depois de tecer loas à liberdade alcançada pelas redes sociais e enfatizar a importância da isenção no Jornalismo (algo que a Globo nunca exerceu), informa a inclusão de um novo item na Seção II dos Princípios Editoriais do Grupo, a ser evidentemente obedecido por todos os jornalistas da Casa.

Três determinações deste novo item dizem bem o que os irmãos Marinho pensam de isenção, ética, respeito ao público de seus veículos ou aos cidadãos de seu país:

  1. “O jornalista do Grupo Globo, sem exceção, não pode, por óbvio, criticar colegas de suas redações ou de redações de competidores nas redes sociais. O crítico acaba sempre por se diminuir diante do público.” Ou seja: jornalista da Globo não pode mais manifestar opinião pessoal nem em sua rede familiar, pois pode se diminuir perante seu público… E, como todos sabem, a Globo não contrata ou mantém jornalistas “menores”.
  2. “O jornalista deve evitar criticar hotéis, marcas, empresas, restaurantes, produtos, companhias aéreas etc., mesmo que tenha tido uma má experiência”. O motivo desta é óbvio, não é mesmo? Já pensaram a Globo fechando um contrato de publicidade milionário com uma rede de hotéis e, de repente, viraliza nas redes sociais uma reclamação da Leilane Neubarth, da Globo News, contra um dos hotéis da rede?
  3. “A única solução é consultar a chefia”, caso o jornalista da Globo ficar em dúvida se pode ou não mandar um post para seu grupo familiar ou de amigos. Afinal de contas, os chefes na Globo sabem tudo, são absolutamente confiáveis e fiéis, apesar de, como diria o Mino Carta, serem piores que os patrões.

Ao que tudo indica, aliás, é este o caminho escolhido pelo supremo juiz Fux, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (aquele mesmo que sentou em cima da discussão sobre o auxílio-moradia dos juízes, de modo que eles continuem recebendo este penduricalho), em relação à grande preocupação com as ‘fake news’ no período eleitoral que se avizinha: ele se reuniu com a grande imprensa e com as duas maiores plataformas digitais, Facebook e Google, e com a maioria dos publicitários contratados pelos partidos políticos, para traçar uma linha de conduta para este tema. Qual é a linha traçada? Ninguém sabe, porque ele determinou sigilo absoluto. Quem tem site ou blog ou vive dando opinião e repassando posts nas redes sociais, tome muito cuidado, pois. A gente já viu esta história antes: começa com censura e termina em prisão.

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