Brasil Nunca Mais (II/IV)

Realmente, além daquilo que eu vivi entre os 16 e os 37 anos, e das histórias contadas por amigos que foram mais corajosos que eu, e que sobreviveram, com sequelas físicas e traumas psicológicos, eu talvez saiba pouco sobre aqueles anos de chumbo (mas, com certeza, é muito mais do que a maioria dos jovens de hoje).

A censura, então, era violenta e até a hoje chamada grande imprensa, que apoiou e aplaudiu o golpe, tinha censores nas redações. Mesmo passados 33 anos do regime militar, esta mesma grande imprensa continua tratando a história daqueles tempos como algo até certo ponto suave, a ser esquecida por uma anistia proposta e elaborada pelos próprios ditadores, uma “ditabranda”, como a Folha de São Paulo denominou em editorial na passagem dos 50 anos da derrubada de Jango Goulart.

Até hoje, o receio dos poderes econômico, político e judiciário do Brasil, de que toda a crua verdade daqueles tempos sombrios venha à luz, é tanto, que as próprias forças militares asseguram oficialmente que todos os arquivos existentes foram destruídos (se é que é verdade, eles destruíram 21 anos da memória documental de um país!).  Nossos historiadores precisam aguardar que os arquivos secretos das instituições americanas, inclusive da CIA, sejam liberados para consulta pública, para garimparem e descobrirem estas verdades.

Aliás, a mais recente delas circulou pela grande imprensa por uma semana e já foi jogada para debaixo do tapete: uma reunião entre a cúpula militar do governo Geisel, com a presença dele, em que foram informados os assassinatos puros e simples de 104 ‘inimigos’, até então uma prática da ditadura, que, na opinião do ditador recém empossado, após ‘pensar’ um fim de semana, teve sua continuidade autorizada (quer dizer: o cara, maior autoridade do país, passa o fim de semana em casa com a mulher e a filha, volta para o trabalho e autoriza matar gente!?).

Estes documentos da CIA estão disponíveis há três anos e nunca houve interesse da grande imprensa em pesquisá-los e mostrá-los para seus leitores. Será que no meio deles  haverá informações secretas dos espiões norte-americanos sobre o Atentado do Rio Centro? Aconteceu em 1981, início do governo Figueiredo – que na reunião supracitada foi indicado por Geisel para dar a ordem final de execução de outros inimigos, “mas somente os mais perigosos” – e foi imediatamente atribuído às organizações inimigas de esquerda, todas elas já derrotadas e extintas, então. Será que os jovens lá presentes para assiistir um show eram os ‘inimigos’ mais perigosos?

Era algo tão inverossímil, mesmo naqueles tempos, que criou-se, então, a versão dos bolsões radicais que não aceitavam a lenta, gradual e segura abertura política ‘comandada’ pelo Planalto, uma versão bem mais crível, já que o atentado em um local que reunia milhares de jovens frustrou-se porque uma das bombas explodiu no colo de um sargento, matando-o e ferindo gravemente o capitão do Exército que estava ao seu lado, dentro do Puma estacionado no Riocentro. Inquéritos policiais militares e julgamentos pela Justiça Militar indicaram os possíveis executores (não os mandantes), que nunca foram punidos. Nas diversas tentativas após a redemocratização, sempre se alegava a Lei da Anistia, para se ‘esquecer’ o assunto…

Coincidentemente, quando estava escrevendo este texto, as Organizações Globo anunciaram que tinham descoberto documentos referentes ao Riocentro. Ou seja, depois que a porteira foi aberta (com a pesquisa do historiador Mathias Spektor, do IPEA, relativa à Geisel), a grande imprensa se dignou a pesquisar e citar documentos disponíveis ao público há 03 anos… Mas, com a crise advinda da greve dos caminhoneiros, o assunto também já foi varrido para baixo do tapete.

Fica aqui a minha interrogação: terminada a crise atual, será que, enfim, eles vão trazer à luz documentos que mostrem de que forma  o então  brilhante Capitão Ustra comandou o  DOI-CODI do II Exército entre 1970 e 1974, período em que, segundo documento do próprio Exército, morreram 50 prisioneiros? (Será que eles vão trazer à luz também, o quanto alguns poderosos empresários, alguns cujos herdeiros continuam poderosos hoje, como o dinamarquês presidente da Ultragas, Boilesen, pagava aos torturadores do  DOI-CODI para assistirem as sessões de tortura? (no You Tube existe um documentário bem instrutivo sobre esta figura, chamado ‘Cidadão Boilesen).

Não sou eu que digo isto… Foi Cláudio Fontelles, ex-procurador geral da República em uma audiência na Câmara com o próprio já então Coronel Brilhante Ustra… foi Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo que, naqueles tempos sombrios, ao lado de outras lideranças religiosas, como o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright e equipes, patrocinaram, pesquisaram e editaram o livro ‘Brasil Nunca Mais”, indicando, com provas, quase todos aqueles que foram torturados e mortos pela Ditadura, e quase todos aqueles que torturaram e mataram em nome da Ditadura.

Quando eu estava fazendo as pesquisas (desta vez, ‘bem lentas’) no Google e no You Tube, para este texto, eu assisti um documentário feito em 2016 pelo ‘Jornalistas Livres’, no qual vários jovens são defrontados com torturados da Ditadura. Enquanto via e escutava os depoimentos, veio à minha mente uma conversa que tive com uma torturada em meados dos anos 70. As imagens e as palavras apareciam aos borbotões,  misturadas e atrapalhadas, e eu tive que parar de ver o documentário para conseguir ordenar pensamentos e emoções.

Ordenados e acalmadas uns e outras, a memória ficou clara: foi uma conversa real que tive há mais de 40 anos, tão avassaladora para mim à época, que minha mente se encarregou de apagá-la, como se nunca tivesse existido. Agora, no entanto, depois que aceitei que ela havia sido real, o fato e a conversa surgiram nítidos, como se estivesse sentado num sofá, tomando uísque e ouvindo Francisca, com seu olhos fixos em mim, pesando minhas reações, contando sua história. Coisas da mente humana… Antes de mostrar este vídeo, porém, é melhor preparar o espírito, vendo este outro, no informativo de uma televisão (continua)

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