Jornada de um míope para a escuridão (I)

Eu sou míope desde criancinha. Segundo meu pai, médico, isto era inevitável, já que ele começou a ter problemas de visão quando era garoto, agravados com o correr dos anos. De qualquer modo, eu só tive consciência da deficiência visual aos 12 anos, no primeiro ano de ginásio, quando tirei uma nota 2,3 numa prova de Português, para espanto da professora, pois eu era muito bom aluno. Ela havia me trocado de lugar com o Fred, um colega bagunceiro de quem ela desconfiava que tinha colado no último exercício em sala dado por ela (ele havia cometido um único erro, coincidentemente o mesmo erro cometido pelo Salum, outro bom aluno que se sentava ao lado dele).

Com isso, eu ‘fui sentado’ na penúltima fileira de carteiras… e não enxerguei quase nada das questões que ela ia escrevendo no quadro verde. Como a gente não podia falar enquanto estava fazendo a prova e como eu era tímido (e obediente), acabei respondendo só as questões que consegui ler e copiar na íntegra… Quando entreguei a prova, ela se assustou e perguntou por que, eu expliquei, ela deu a nota que eu merecia, 2,3, mas escreveu um bilhete para meus pais, pedindo para eles me levarem a um oculista. Lembro que meu pai fez apenas um comentário: “Pensei que fosse demorar um pouco mais”.

Eu fiquei exultante com o fato. Tanto que fui buscar a grande novidade, meus óculos, pouco antes de pegar o tróleibus para ir para o Colégio Estadual, numa ótica que tinha na rua Espírito Santo, quase esquina com a rua em que eu morava, a dos Tupinambás, e desci esta rua dando adeusinho para minha mãe, que ficara na janela do apartamento (no nono andar) esperando eu aparecer de óculos pela primeira vez…!

Usar óculos, para mim, teve dois significados antagônicos, endo que o negativo foi bem menos impactante que o positivo. No primeiro, o bullying, (que não existia naquela época como algo a ser combatido, pois era da natureza humana gozar e ser gozado) e, contra a gozação cada um reagia a sua maneira. No meu caso, se alguém me chamasse de ‘quatro olhos’ ou ‘cegueta ou ‘cegum’, a reação dependia do ofensor: se parecesse mais fraco, eu tirava os óculos e partia para a discussão (felizmente, a turma do deixa-disso apartava logo) e se fosse mais forte, fingia que não era comigo e me valia dos óculos (naqueles tempos, não era de bom tom bater em alguém de óculos…).

Do lado positivo, eu me aproximei ainda mais do personagem em que eu me espelhava para ser alguém na minha turma do Mantiqueira, o Professor, capitão de areia de Jorge Amado. Ele usava óculos e os primeiros óculos que escolhi para usar foram exatamente iguais aos que eu imaginava que o Professor usava, de aros redondos, o que me tornava diferente do grupo em que convivia.  E isso tinha um significado que me favorecia (“Quem escreveu isto?” “Foi aquele garoto de óculos redondos” “Só podia ser! Ele é muito inteligente!” Garotos de óculos redondos sempre pareciam muito inteligentes!)             

Mais que isto: eu passei a ser o garoto de óculos redondos que, mesmo ‘cegueta’, jogava um bolão! Explico: naquela época, o  Colégio Estadual não admitia turmas mistas. As únicas horas em que meninos e meninas se encontravam com tempo para conversar e encetar “namoricos” era nas aulas de educação física, nas quadras esportivas.

Minha turma tinha um time de futebol de salão (futsal é nome recente, quando este esporte se profissionalizou), que fazia suas partidas (educação física era isto, então) na mesma quadra que uma turma de meninas fazia suas partidas de handebol. Às vezes, nós assistíamos as partidas delas, às vezes, elas assistiam as nossas partidas.

As únicas horas em que minha timidez crônica desaparecia era quando eu estava jogando futebol de salão. E eu era realmente bom! Jogava pela direita, corria muito e tinha um dibre curto difícil de ser travado pela defesa adversária… e marcava muitos gols. Pouco antes de começar a usar óculos, meu time de futebol de salão, Mantiqueira Esporte Clube, tinha ganho um torneio infanto-juvenil municipal, um feito ‘épico’, vez que a vitória final foi sobre o time da Paróquia da Lagoinha, a equipe tricampeã do torneio… E no campo deles! (Nosso campo era no Parque Municipal de Belo Horizonte).             

Evidentemente, quem jogava futebol de  salão no Colégio Estadual sabia deste feito, o que acabou se espalhando pelos alunos de Educação Física no geral, despertando a curiosidade da meninada quando me via chegar ao campo usando óculos: “Cumé que aquele cegueta é campeão de futebol de salão?”

A capitã do time de handebol era uma garota de cabelos louros encaracolados e olhos verdes, Rachel Hoffmeister (Rêitchel, como ela fazia questão de ser chamada), muito curiosa, que se aproximou bastante de mim, querendo saber como eu, usando óculos, conseguia jogar bola tão bem e sem óculos? Como era inevitável, me apaixonei perdidamente por ela… e atribuí aos óculos, meus amados óculos e minha grandiosa miopia,  o fato incrível de ela ter se interessado por mim.

Enfim, vivi bem com meus óculos toda a juventude e, com o tempo, os óculos se tornaram parte essencial da minha personalidade. O único senão foi ter que abandonar o futebol de salão uns dois anos depois – a miopia aumentou e já não dava para jogar sem óculos. Quando começou a febre das lentes de contato, eu me recusei a usá-las, nem tentei fazer exames para tal. Na época eu usava uns óculos de lentes retangulares, cabelos de pontas viradas na nuca, com ou sem bigode, mas quase sempre de barba rala, roupas folgadas e fumava sem parar, o típico intelectualóide frequentador dos barzinhos e inferninhos do Maleta, em Belo Horizonte. Os óculos compunham bem esta estampa…    

Muitos anos depois, já homem sério, casado e com filhas, por necessidades profissionais (além de escrever, eu tinha que fotografar e filmar), tentei substituir meus óculos por lentes de contato, mas não me adaptei. Os olhos não aceitavam, ardiam e ficavam vermelhos, e o cara que me olhava do espelho não era eu… era outro, uma figura estranha que me parecia sem alma. E continuei usando óculos…

Foram dezenas e dezenas de óculos. Quadrados, retangulares, redondos, de lentes esverdeadas, com protetores escuros, com armação preta, marrom, amarela, de alumínio… A cada época, na evolução da minha vida, os óculos se ajustavam à minha personalidade. Com o tempo, o problema foi a dependência: sem os óculos, eu enxergava pouco e ficava inseguro, uma insegurança que me tornava mais recolhido, menos partícipe de aventuras típicas dos homens de família.

Exemplifico: mais velho e mais míope, eu tinha uma chácara, Chalueo, em Alexânia, a 70 km de Brasília. Durante uns 13 anos, a família de minha segunda mulher ia nos encontrar lá quase todo fim de semana. Algumas aventuras típicas, como pescar no rio Sapezal, que corria abaixo da chácara, ou numa lagoa que ficava do outro lado da rodovia, eu não ia… assim como evitava de ir jogar sinuca no bar da Peba (ou era Pel’…?) na cidade… Jogar para perder? Pra quê? (continua)

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