Dedo-duragem

Nos tempos em que estagiei como jornalista em rádio, na década de 70,  eu ficava na emissora até duas/três horas da madrugada, atualizando e editando a parte nacional e redigindo a parte internacional do primeiro jornal da manhã, que entrava no ar exatamente às 07 horas, com “asDedo-duragem 1 últimas notícias do Brasil e do mundo!”, como anunciava a voz aveludada do locutor, ao mesmo tempo, produtor de um programa noturno de músicas, que era adorado pelas domésticas e comerciárias, segundo o medidor de audiência daqueles tempos, o número de telefonemas/dia para a rádio, antes, durante e depois do programa.

As últimas notícias do Brasil e do mundo vinham pelo telex, um aparelho que a geração Internet não tem a menor idéia do que seja… e era a melhor forma da gente saber os acontecimentos em tempo quase real. Ainda eram tempos de guerra fria e Níquisson e Brêzniéve colocavam o Dedo-duragem 2mundo em suspenso a todo momento. Eu lia as notícias e reescrevia o texto de modo que o locutor do jornal, com a devida emoção, retransmitisse a informação sem tropeçar nas letras… Por isto, Níquisson e Brêzniéve, em vez de Nixon e Brejnev…!

A Rádio Jornal de Minas pertencia a Cúria Metropolitana e sua parte de imprensa era comandada por Lélio Fabiano (que, mais tarde, foi meu padrinho no primeiro casamento), que dava muita força aos estagiários, tanto que, depois da primeira semana em que fiz o jornal da manhã, deixou o trabalho inteiramente sob minha responsabilidade, sem qualquer supervisão direta; vez ou outra, me esperava chegar à rádio deDedo-duragem 4 noite, para comentar meus textos e sugerir mudança no enfoque ou na forma de escrever. Algo que ele fazia com todos os estagiários,’mão de obra barata’ que a rádio fazia questão de ter, alegando não dispor de recursos suficientes para contratar muitos jornalistas profissionais.

Mas havia jornalistas também, além do Lélio que, aliás, era advogado de formação e jornalista por opção. Havia até um jornalista de ‘tiragem’ que nunca fiquei sabendo se era um jornalista a serviço da polícia, dDedo-duragem 11os tiras (por isto o nome), ou se era tira mesmo, lá colocado para ser censor e, ao mesmo tempo, divulgador das “ações patrióticas de combate ao comunismo” encetadas por policiais e militares.

Diretamente, ele nunca me incomodou, vez que ele achava que minha parte naquele latifúndio eram só as notícias internacionais transmitidas pelo telex, bem como que havia uma ‘determinação’ prévia nesta área, de não incluir nos jornais, sem autorização do editor,  informações sobre a União Soviética, Cuba, China, Alemanha Oriental… a não ser que fossem catástrofes ou notícias negativas, e a gente obedecia, claro! E só me lembrei deste nome, jornalista de ‘tiragem’, aDedo-duragem 10o ler a matéria “Lava Jato atiça a ‘tiragem’ na caçada ao Lula”, do jornalista de fato Ricardo Amaral, no GGN.

O que incomodava mais, então, era a presença onisciente nas salas de aula do Curso de Jornalismo, nas festinhas de fim-de-semana e encontros em botecos pós-aulas, de um informante das forças repressivas. Uma figura que a gente sabia que estava lá, mas que a gente não sabia quem era. No primeiro ano, desconfiamos de um senhor bem mais velho que nós, delegado de polícia, pois não víamos sentido no seu interesse por jornalismo.

Mas, era óbvio demais… além do que, o Delegado era gente muito fina, companheiro leal quDedo-duragem 12e, como delegado da ativa, quebrou muitos galhos de seus jovens e nem sempre ajuizados colegas, um delegado de polícia que queria ser mais do que isto, como acabou sendo, quando se formou com a turma. Até hoje, quando nos encontramos anualmente, o informante permanece incógnito: quem era o tira do DOPS? Tornou-se agente da ABIN? Virou um jornalista de ‘tiragem’ moderno, desses que ainda andam pelas redações da grande imprensa clamando por medidas conservadoras, como mervais e que tais?

Na verdade, eu só fui me incomodar com dedo-duragem – e ser incomodado algumas vezes – quando fui convidado para ir tDedo-duragem 13rabalhar em Brasília, numa empresa estatal, onde acabei ficando até me aposentar. O ditador de plantão era o mais prussiano de nossos generais, Ernesto Geisel, e, apesar de certo liberalismo político, manteve todo o aparato controlador do Estado sobre os cidadãos, especialmente os funcionários do governo. Todos os órgãos, autarquias e empresas estatais tinham uma estrutura chamada de Segurança e Informações, geralmente ocupada por um militar da reserva.

No caso da minha empresa, o ASI era um coronel de barrDedo-duragem 15iga proeminente e cabelos brancos aparados militarmente, que tinha um prazer enorme em chamar a gente à sua sala para conversas particulares, nas quais mostrava um conhecimento sobre os mais diversos assuntos que não saiam na imprensa mas, certamente, lhe eram transmitidos pelos boletins internos de segurança enviados pelo SNI.

Logo que cheguei à empresa, convidado por um colega que se formara jornalista comigo, fui levado por ele ao presidente, já que minha função seria assessorá-lo na área de comunicação. Conversamos por um bom tempo – ele era pouco mais velho que eu, tinha a cabeça aberta, grandes idéias que já vinham sendo implementadas na área, e gostou das minhas idéias em relação à divulgação deste trabalho. E me disse, sem rodeios: “por mim, você está contratado… se passar pelo coronel, que já me falou de sua agitada vida estudantil, arrume a mala que viajamos para Curitiba juntos semana que vem.”

Depois de aguardar quase uma hora sentado num banco de madeira numa saleta de espera minúscula, o ASI me recebeu, com uma pasta verde aberta sobre a mesa, onde se espalhava uma dúzia de papéis, todos ou quase todos carimbados por um CONFIDENCIAL bem visível no topo da página.Dedo-duragem 14

Ele se apresentou, fez um pequeno histórico de sua vida militar e explicou, tentando ser didático, as razões da “revolução”, dentre elas a de ter salvado o Brasil do comunismo, e, pegando um dos papéis à sua frente, como se o tivesse lendo pela primeira vez, balançou a cabeça negativamente e, após alguns hams hams e hums hums, olhou-me fixamente e determinou: “É… você andou se envolvendo um pouco com política estudantil, não é mesmo? (Eu havia sido eleito vice-presidente do Diretório Acadêmico da FAFICH e, com o “sumiço” do presidente na guerrilha do Araguaia, acabei sendo seu presidente durante algum tempo.) Mas, a febre já passou, não é mesmo? Já virou adulto e está pronto para contribuir para o crescimento sadio da pátria-mãe, não é mesmo?” Não esperou qualquer resposta minha e emendou: “Sua esposa está gostando de Brasília? Espero que sim… pois é bom você ficar por aqui mais dois ou três dias até meus superiores liberarem seu nome… Estamos combinados? Tenha uma boa tarde!”

Boa tarde foi a única frase que eu falei em toda a entrevista, mas o recado foi dado: ele conhecia minha vida, sabia até que tinha ido à Brasília com minha mulher e ficaria de olho na minha conduta, caso eu fosse contratado. Ficar de olho é força de expressão. Convivemos pacificamente durante alguns anos na empresa e, vez ou outra, ele aparecia na minha salinha ou me convidava para a sua, para bater papo, ele sempre querendo mostrar que sabia das coisas.

A ditadura acabou há muito tempo. As ASI’s foram desativadas, os ‘dedo-duros’ oficiais desapareceram… E surgiram os equivalentes aos jornalistas de “tiragem”, figuras que não se constrangem em escrever matérias, fazer comentários e emitir opiniões em benefício de lideranças políticas e/ou setores econômicos. Mas, se a imprensa se tornou um negócio como outro qualquer, condená-los quem há de?

Dedo-duragem 16

Dedo-duragem 18      Dedo-duragem 17

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *