Os crédulos, os idealistas, os fascistas e eu (III)

Durante muitos anos, nossa associação, dentro de suas possibilidades, tentou conscientizar moradores e ocupantes de fins de semana das chácaras, comerciantes e produtores, através dos meios de comunicação disponíveis – inicialmente, comunicados, informativos, faixas pela rodovia e assembleias e, mais recentemente, site e redes sociais – para estes problemas, ressaltando sempre a importância da preservação ambiental da região como essencial para o processo de licenciamento ambiental que vinha sendo conduzido pela associação em acordo com os donos das terras, a União, e os próprios órgãos ambientais.

Não houve melhoria substancial dos procedimentos. Para exemplificar, vou me fixar apenas em um problema; a descarga de lixo: usuários e moradores de chácaras continuam descartando lixo, lixo que não é lixo, entulhos de construção e animais mortos tanto nos contêineres quanto pelo acostamento das ruas e travessas internas, obrigando a associação a contratar os serviços de limpeza das baias que abrigam os contêineres e recolher o lixo que não é lixo, acumulando-o na própria associação até sua coleta pela administração pública, uma, duas, três semanas depois.

Na solução dos problemas relativos ao lixo é que as muitas propostas e reivindicações da comunidade apresentadas no grupo de Whats’App me fizeram voltar aos tempos do ginásio, com a diferença brutal que, àquela época, as discussões eram presenciais, frente à frente, muitas vezes de dedo em riste e com muita vontade de enfiá-lo na cara do colega e, agora, se fazem via celular, à distância. Mesmo assim, as crianças voluntariosas que éramos não se diferenciam dos adultos donos de certezas absolutas que somos. E se havia ideias estapafúrdias e inviáveis ontem, também as há hoje.

Boa parte delas tem origem comum: a falta de conhecimento de proponentes e reivindicantes tanto das diferenças organizacionais entre uma área urbana e uma zona rural, quanto da sistemática operacional de descarte e coleta do lixo na região. Ou seja: propor que cada chácara coloque coletores de lixo no portão, de modo que um caminhão recolha o lixo, como acontece na área urbana, é inviável porque o serviço de limpeza do governo só recolhe o lixo depositado nos locais próprios na rodovia.

Do mesmo modo, propor a separação do lixo pelos próprios usuários é perda de tempo porque a coleta feita pelo serviço de limpeza não seleciona o lixo coletado por ele, isto é, mesmo que cada tipo de lixo estivesse depositado num container próprio no local adequado, ele seria misturado no caminhão público de coleta. Além disso, cada rua teria que dispor de pelo menos 06 contêineres – para metais, plásticos, vidros, papéis, recicláveis e resíduos perigosos (já que, como é uma área rural, o lixo orgânico deve ser reaproveitado na própria chácara – que dobraria os custos de aquisição e manutenção, já hoje, com 03 contêineres por rua, a maior despesa bancada pela associação.

Nas minhas memórias aventurescas da pré ditadura, disse das ideias tresloucadas que pintavam no pseudo grupo dos 11. Mas éramos jovens, plenos de adrenalina e de vontade de fazer a diferença no mundo. E não é que neste grupo de hoje, de profissionais experientes e vividos, também surgiram ideias tresloucadas? Uma delas: retirar todos os contêineres das ruas! E a justificativa: as pessoas se conscientizarão, à força, da importância dos contêineres e que é preciso descartar o lixo de modo adequado e organizado. Outra: escolher uma das chácaras não ocupadas, ou seja, sem usuário cadastrado na União, e transformá-la num lixão .

Minha contestação a ambas não foi aceita pelos proponentes. À primeira, respondi que era um ledo engano! Ninguém conscientiza ninguém à força e usuários e moradores continuariam a jogar o lixo nos locais onde havia contêineres e o serviço público deixaria de recolhê-lo por não estar depositado em contêineres e remexido e espalhado pelos bandos de cachorros do mato e de catadores de lixo. Ele se irritou e disse que a associação era dirigida por um bando de velhinhos aposentados que nada faziam e não aceitavam ideias novas ou revolucionárias. À segunda, lembrei que a região era zona de amortecimento ambiental e um lixão era a maior fonte de contaminação do ambiente, o que era proibido pela legislação em vigor. Ele ficou p..o* e disse que seu avô tinha sido síndico de edifício à época da ditatura e que os militares estavam voltando ao poder e acabariam com esta frescura de legislação ambiental que atrapalha a vida das pessoas de bem.

Não preciso dizer que são tempos estranhos estes de hoje. Como os eram também num longínquo 1963. A diferença é que então eu tinha 15 anos e o mundo era uma incógnita pra mim, que precisava ser enfrentado e descoberto.  Hoje, eu tenho 73 e não há enigmas a serem desvendados e explicados. Além do que não tenho mais saco pra ensinar caminhos para crédulos e idealistas, que ainda têm fé em mudar os homens e o mundo.  E nem para fascistas, que acham que tudo se resolve com porrada. Então, saí do grupo.

(*) Como “revolucionários conscientes”, todos tínhamos codinomes, para não sermos identificados em caso de refrega com a polícia. Depois de 1964, Galego entrou num movimento subterrâneo, “caiu” e foi torturado, ficando preso por 03 anos em São Paulo; Enfezado entrou num grupo armado e acabou indo pro Araguaia, onde foi preso, torturado e fuzilado; Cabeção virou radialista e morreu de Aids há 15 anos, sem sair do armário; e Cegueta, eu, continuo tentando conviver com meus fantasmas. (fim)

 

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