Os crédulos, os idealistas, os fascistas e eu (II)

Eu já escrevi aqui que a memória da gente é um bicho muito estranho. Eu me lembrei desta aventuresca vida ginasial por causa das eleições da associação de que participo aqui no núcleo rural onde moro.  O núcleo é extenso, uns 35 km², com cerca de 10 mil habitantes, entre “proprietários”, comerciantes, caseiros e prestadores de serviços e respectivas famílias, distribuídos por 1.300 chácaras. Não há proprietários ainda, mas ocupantes de terras que pertencem à União, e o objetivo básico da associação é, justamente, buscar a regularização fundiária das terras, transferindo as chácaras para seus legítimos ocupantes.

Evidentemente, como é uma área rural e o governo distrital não dá muita atenção às necessidades de seus habitantes, a associação acaba por também coordenar/executar serviços de responsabilidade do governo – coleta de lixo, manutenção de ruas internas, roçagem do mato – além de abrigar o posto de saúde, o posto da Polícia Militar, os poços de controle de qualidade e quantidade da água dos lençóis freáticos, e o posto da Emater.  Para isto, conta com as mensalidades dos associados, cerca de 450 dos 1.300 possíveis, o que implica na óbvia necessidade de que seus dirigentes, eleitos a cada 02 anos, sejam voluntários, ou seja, trabalhem de graça para a comunidade.

Isto, infelizmente, torna complexo e dificultoso o processo eleitoral: são 16 dirigentes (diretoria e conselhos) a serem escolhidos a cada eleição… e, dificilmente, há 16 ocupantes de chácaras associados dispostos a dedicar um tempo, voluntariamente, a cortar os muitos nós colocados pelos órgãos ambientais e fundiários, e a resolver outros tantos problemas no dia a dia de uma comunidade. Ou seja: com muito custo, os associados conseguem montar uma chapa única para a eleição. Aliás, com muito custo, se consegue 10% deles dispostos a votarem na chapa que se monta…

Na última eleição, não foi diferente. A direção vigente já permanecera por 02 mandatos e outras pessoas teriam que assumir o encargo mas, à medida que se aproximava a data de encerramento de inscrição de chapas, nenhuma aparecia. Eu tive que fazer uma campanha, via redes sociais, e-mails e site, anunciando o fechamento da associação se não houvesse candidatos à sua direção. Deu certo: uma chapa se inscreveu. E foi pela campanha eleitoral desta chapa que minhas memórias revolucionárias foram despertadas.

Mesmo sendo única, a chapa decidiu fazer uma campanha de divulgação de seus projetos para a gestão da associação nos próximos dois anos e criou um grupo de Whats’App aberto à comunidade para discutir as propostas da chapa, bem como para apresentar reivindicações e sugerir projetos a serem abraçados pela chapa e desenvolvidos após a eleição. Houve boa receptividade da comunidade e muitas foram as ideias e propostas postadas no grupo. A maioria, infelizmente, de difícil consecução pela associação, seja pelo pequeno quadro funcional, seja por sua pouca disponibilidade financeira, seja por impossibilidades legais.

E as muitas discussões geradas a partir das ideias expostas e reivindicações feitas no grupo me fizeram refletir nos grandes males dos brasileiros em geral, hoje e sempre: a ignorância política e o absoluto desinteresse pela vida comunitária, não importando se a farinha é pouca ou muita… o que interessa, pra cada um, é que o seu pirão  venha primeiro…

Uma área rural cercada de parques e reservas biológicas como esta em que vivo, a apenas 30 km do centro da capital, tem inúmeras vantagens, o que não significa que seja um paraíso em meio ao urbanismo desenfreado do mundo atual. Poderia ser, se seus habitantes percebessem que viver num paraíso impõe algumas obrigações que envolvem o respeito ao meio ambiente, significando isto, acima de tudo, observar as regras de convivência com a natureza            Numa comunidade de 10 mil moradores, a maioria crianças e jovens, boa parte ainda não tem esta consciência.  Muitos ocupantes das chácaras usam-nas apenas como lazer familiar nos fins de semana, quando reúnem amigos e parentes para churrascadas festivas. Outros usam-nas para promover festas e raves, onde o consumo de bebidas e drogas consome fins de semana. Resultado lógico: o lixo transborda os contêineres à espera da coleta dos caminhões do governo, atraindo insetos, ratos e cachorros e os riscos de acidentes triplicam com bêbados e drogados voando por ruas de terra e na rodovia, única porta de saída da região.

Mas há, também, os que moram e não diferenciam a vida bucólica do campo da vida agitada da metrópole. A mesma correria por estradas internas e rodovias, sem qualquer preocupação nem com os animais que saem dos parques, nem com os moradores que rodam de bicicleta pelo acostamento, apesar de disporem de uma ciclovia. E muitos, também, sem qualquer respeito pelo ambiente paradisíaco em que moram, se recusam a construir baciões para coleta de água pluvial para reabastecimento do lençol freático, promovem queimadas para limpar o terreno das próprias chácaras, descartam móveis, equipamentos, entulhos de construção e até animais mortos nos contêineres e prendem ou caçam aves e animais, porventura avistados em seus domínios. . (termina na sábado)

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