Os crédulos, os idealistas, os fascistas e eu (I)

Em meados dos anos 60, pouco antes da rebordosa, eu fui transferido pro Colégio Estadual da Serra, pra repetir o 3º ano ginasial (era um castigo: eu morava no centro, mas tomara bomba e o Colégio Estadual, que criara filiais em 04 bairros de Beagá, precisava preencher as vagas de cada uma delas, pra justificar a decisão de seu Conselho Diretor). Não tenho do que reclamar. Era mais longe de casa, tinha que almoçar e pegar um ônibus mais cedo e voltava pra casa já escurecendo, pra preocupação de minha mãe, mas consolidei minha consciência política neste ano da graça de 1963, quando a situação política do Brasil já estava imprevisível, como sempre, aliás.

O Colégio Estadual da Serra, nos anos 60, era, efetivamente, no alto de uma das serras que cerca Belo Horizonte. Olhando de frente pra ele, havia uma discrepância política à época: à direita, ficava o Convento dos Dominicanos, um “antro de comunistas propagadores da revolução cubano-castrista” e, à esquerda, o Clube de Tiro de Belo Horizonte, o ninho de policiais, militares e bem postos na vida, que se preparavam pra caçar os cubano-comunistas que “o Jango estava infiltrando no país”.

Na minha turma, só de garotos, havia eu e mais três repetentes vindos do Estadual Central e, portanto, mais velhos que a garotada que morava na Serra, bairro de classe média, de poucos bares e comércios. Dois deles, Galego e Enfezado, faziam parte da JEC – Juventude Estudantil Católica, e o outro, Cabeção, não se ligava em política, era fanático por música mas, pela repetência e nossa presumida maturidade se identificava conosco. E nos acompanhava quando matávamos aula pra ir discutir política com os dominicanos (*).

No convento, havia dois freis com quem conversávamos sempre: Frei Marcelo e o frei porteiro (não me lembro do nome dele, acho que era Aristides). Frei Marcelo era de família rica da Zona da Mata mineira. Por algum mal feito na juventude – que ele nunca nos disse – fora mandado pra estudar na Suíça. Não se adaptara e fugira, rodando por boa parte da Europa, com dinheiro mandado escondido pela mãe e trabalhando aqui e ali, quando a coisa apertava. Teve uma espécie de revelação quando andava por Evreux, na França, e pediu abrigo no convento Saint-Marie de La Tourette, dos dominicanos. E tronou-se frei, retornando ao Brasil em plena efervescência do governo Goulart.

Já o frei porteio tinha uma história oposta: a mãe era uma das empregadas de uma família de donos de boiadas do Vale do Jequitinhonha, em Minas. Mocinha ainda, foi emprenhada pelo filho do fazendeiro, algo absolutamente normal. O jovem foi mandado estudar em Belo Horizonte, ela continuou empregada, e o bastardinho foi criado na fazenda, no meio de outros bastardinhos e filhos de colonos. Sem o filho na fazenda, o dono da fazenda resolveu se engraçar também com a mãe do neto bastardinho, mas ela não topou, e contou pra avó do bastardinho… E mãe e bastardinho foram expulsos da fazenda. O padre de Minas Novas, maior cidade da região, ficou sabendo da história e recolheu mãe e filho, empregando a mãe na casa paroquial. E cuidou da educação do bastardinho. Que, sem muitas luzes, acabou como frei porteiro do Convento dos Dominicanos de Belo Horizonte.

À medida que a política nacional esquentava – João Goulart, que só assumira a Presidência com a renúncia de Jânio Quadros, porque aceitara o parlamentarismo imposto pelos poderosos de sempre, conseguira reverter o regime para o presidencialismo –  mais animadas ficavam as reuniões no Convento.

Jango, um rancheiro gaúcho, afilhado de Vargas, sem qualquer vínculo com a esquerda, mas cada vez mais envolvido numa política de reformas estruturais do país, entrou em processo de fritura em óleo fervente: a grande imprensa falava de corrupção num dia e de quebra de hierarquia no outro, as forças conservadoras corriam aos quartéis num dia e emprenhavam os ouvidos carolas no outro. E, por trás, os dólares americanos enchiam os cofres de institutos e associações ‘democráticas’, como IBAD e IPES, que faziam reuniões, produziam filmes e conquistavam mentes e corações contra o comunismo pagão cubano-castrista.

A animação no convento levou outros coleguinhas para as reuniões, a ponto de tentarmos, até, criar um Grupo dos Onze no colégio (grupos criados em fins de outubro de 1963 pelo então deputado federal Leonel Brizola, com o objetivo de lutar pela implantação das chamadas reformas de base – agrária, urbana, educacional, bancária etc. -preconizadas pelo presidente João Goulart, e pela “libertação do Brasil da espoliação internacional”). Não criamos… Frei Marcelo nos demoveu.

Mas, o fervor revolucionário da garotada era inesgotável! E eram lançadas ideias as mais estapafúrdias que se possa imaginar, desde a invasão do Clube de Tiro para tomar as armas e, armados, descermos a Rua do Ouro (que cortava todo o bairro da Serra), caso os milicos dessem um golpe, até roubar as armas do Clube de Tiro à noite e subir a serra até a Torre de Televisão (que ficava lá no alto, mas não muito longe), ocupando-a para que as lideranças janguistas pudessem fazer pronunciamentos à Nação. (continua na 5ª feira)

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