De milico a meleca (II)

Saindo da Presidência, Silvestre ligou pra ele – que fazia questão de marcar horário de visitas, e nunca no mesmo dia – mas, considerando a urgência, relatada pelo Silvestre, abriu uma exceção e me recebeu àquela hora mesmo. Já contei esta ‘entrevista’ aqui no blog, e repito, apenas, o fato que interessa aqui: depois de uma aula do Brasil grande e poderoso que surgira a partir de 64 e das responsabilidades que eles, como brasileiros e patriotas tinham para manter o Brasil temente a Deus e livre do comunismo pagão, levantou uma ficha amarela que estava sobre a mesa e dedicou uns 05 minutos à leitura da ficha (uma técnica conhecida de amedrontamento naqueles tempos sombrios).

Aí, me olhou perfunctoriamente e foi direto: “É… você andou cometendo alguns pecados na juventude, não é mesmo? No Colégio Estadual… Na Faculdade… foi até presidente de Diretório Acadêmico! Ah! E tem aqui uma história de um terrorista comunista que você empregou quando era Chefe de Arte da MAI Editora, não é mesmo? Bem, na juventude a gente costuma fazer muita besteira e vou acreditar que as bobagens ficaram pra trás. E você foi muito bem recomendado pelo dr. Gorgulho. Então, não vou impedir sua contratação, mas fique você sabendo que estou de olho em você.” Levantou-se de supetão, me obrigando a imitá-lo e disse, solene: “Comunistas por aqui não passarão!” Eu agradeci por ter me recebido e saí, pensando com meus botões: será que ele sabe que ¡No passaràn! foi um grito de guerra de Dolores Ibarruri, uma comunista espanhola, tentando evitar que forças franquistas tomassem Madrid? Anos depois, descobri que ele nem sabia quem tinha sido La Passionária, nome que ela passou à história.

Parêntesis necessário para entender a ficha que o coronel lia antes de falar comigo: está havendo uma certa indignação entre jornalistas, intelectuais e oposicionistas em geral contra o ministro da Justiça, pela descoberta de um dossiê elaborado pela pasta sobre a atuação de 579 professores e policiais identificados como antifascistas. Para os muitos que não viveram aqueles tempos sombrios e que, por isto, não dão importância a dossiês (ou documentos) elaborados e mantidos pelo governo sobre possíveis adversários políticos, fiquem sabendo que eles têm não apenas a finalidade de cadastrá-lo e vigiá-lo, mas, se for o caso, de acusa-lo e prendê-lo sob qualquer pretexto, só pelo fato de você ter ideias divergentes dos poderosos de plantão.

No final das contas, descobri que o coronel França era inofensivo. Ao contrário de muitos outros. Como aqueles que se tornavam presidentes de empresas estatais, o que aconteceu na CIBRZEM. Com a mudança de general no comando da ditadura, o nível ministerial seguiu o padrão presidencial – o novo “hômi” gostava mais de cavalo do que de gente. Balançando entre o ufanismo desenvolvimentista de Médici e a abertura lenta, gradual e segura de Golbery, o general Figueiredo manteve algumas figuras básicas do governo Geisel, como Simonsen e o próprio Golbery, mas trouxe de volta outras figuras, também básicas do período mais brutal da ditadura, como Andreazza e Delfim Neto.

Infelizmente, o lado negro da força fez a diretoria da CIBRAZEM. E o coronel que foi presidi-la tinha horror à jornalistas e à liberdade de imprensa que, no entender dele, era coisa de comunista… Mas, como eu disse, eram tempos de abertura, a ditadura se abrindo lentamente pra retomada, bem controlada, da democracia. E a Assessoria de Comunicação foi mantida… mesmo que sem qualquer atividade mais significativa. Durante algum tempo, eu e meus 04 funcionários nos limitamos a mandar cartões assinados pelo presidente aos demais funcionários, cumprimentando-os pelo aniversário ou lamentando a morte de um familiar, a fazer o clipping (recorte de notícias) e a distribuir releases (notas) devida e diretamente revisados pelo presidente, aos jornais, rádios e televisões, e a, nas muitas horas de ócio, jogar batalha naval.

Estava mexendo os pauzinhos pra mudar de emprego, quando estourou um escândalo num processo de armazenagem no Rio de Janeiro. A Rede Globo caiu em cima e, como sempre, a grande imprensa seguiu no embalo. A pressão sobre nós e a assessoria de imprensa do Ministério da Agricultura foi infernal, mas o coronel batia o pé: não converso com comunistas… Até que o ministro, por recomendação do Planalto, mandou-o dar uma coletiva aos setoristas. Já contei esta história aqui também: ele recebeu os repórteres, disse algumas palavras agradáveis de acolhimento e pediu pra secretária entregar uma Nota de Esclarecimento aos presentes. Não permitiu perguntas e dispensou todos eles, pois nada mais havia a acrescentar.

Não aguentei mais. Arranjei uma requisição e fui trabalhar, trabalhar mesmo, primeiro no Ministério da Indústria e Comércio, um antro de mineiros vindos com o ministro Camilo Penna, que estava lançando o Pro-álcool, e depois na COBAL, que havia criado uma diretoria só pra cuidar de programas especiais de governo, como a importação de carne, para onde fora indicado um velho amigo, antigo delegado da CIBRAZEM no Paraná.

Apesar dos porões da ditadura tentarem interromper, a abertura lenta, gradual e segura teve seguimento e, mesmo com o famoso atentado do Riocentro, felizmente frustrado, Figueiredo acabou sendo obrigado a transferir a faixa presidencial a um civil, o que não fez diretamente, pois preferiu sair pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, e apesar de o presidente empossado não ter sido o eleito indiretamente, mas o vice, que apoiara a ditadura desde os seus preparativos, mas pulara fora nos seus estertores.

Com as mudanças políticas, eu já voltara pra CIBRAZEM,  e os novos ventos democráticos acabaram me levando á Chefia de Gabinete da presidência da empresa. Não encontrei mais milicos pela frente até, já aposentado, me mudar para uma área rural e, ainda ativo, me envolver com a entidade representativa da região, uma associação de produtores rurais. O Núcleo Rural tem muitos altos servidores públicos aposentados e muitos militares da reserva. E poucos dispostos a se dedicarem à gestão voluntária da entidade. Mas que são sempre enfáticos em suas críticas à gestão daqueles que, voluntariamente, se dedicam a este trabalho.

Não entrei em choque com nenhum deles, felizmente. Mas tive que tomar certos cuidados. Num dos grupos de Whats’App que participo, por exemplo,  postei, certo dia, após me referir à pouca importância que os moradores da região estavam dando à pandemia – os botecos permaneciam cheios de caseiros e prestadores de serviço e algumas chácaras continuavam dando festas e reunindo pessoas nos fins de semana, refletindo o pouco caso das autoridades – comentei que o Brasil não era, realmente, um país sério.

Naquele dia mesmo dois amigos me ligaram pedindo pra eu moderar minhas opiniões nas redes, pois dona Fulana de Tal já estava telefonando para amigas e participantes do grupo pra exigir a minha expulsão, pois no grupo não cabia um comunista… Argumentei que eu não fizera qualquer manifestação política, exatamente por saber que aquele grupo era específico para tratar dos assuntos da região, e que fizera apenas uma constatação real, que qualquer morador podia constatar nos fins de semana. E um deles foi conclusivo: “Eu sei, cara… eu li o post! Mas ela é viúva do general Sicrano, e você criticou o Brasil e as autoridades… Você não tem ideia de como mulher de alto oficial é mais ‘patriota’ que o próprio!”

Pois eles e elas estão mandando de novo. E as novas gerações, que não vivenciaram a ditadura, estão levando a vida numa boa, pouco se lixando pros arreganhos fascistas dos bolsonários e seus generais de pijama. Quando suas mulheres saírem às ruas com faixas pedindo ordem e segurança e gritando Deus, Pátria e Liberdade, a primeira coisa que vai pro lixo e vira meleca é, justamente, a liberdade que os jovens ainda dispõem nesta frágil democracia em que ainda vivemos. Na minha época, nós não esperamos pra saber e fizemos a hora, que demorou 21 anos pra acontecer, mas valeu a pena…! Estar livre, ser livre, sentir-se livre sempre vale a pena! (fim)

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