Os 04 cavaleiros da porca Alice (1ª temporada)

Ascensão de um mito – Capítulo 1

Era uma vez, num país distante, uma aldeia, uma pequena aldeia chamada Ibirapitanga pelos nativos, banhada pelo mar a leste e cercada de fazendas pelos demais lados.  Numa destas fazendas, moravam os Tosconaros, pai e três filhos, temidos na região, tanto pela malandragem nos negócios quanto pela facilidade com que manejavam armas, sendo exímios matadores de animais, fossem selvagens, fossem domésticos que se aventuravam a entrar em ou fugir de suas terras. O pai era um antigo carabineiro das forças de defesa da região, que nunca fora `a guerra (que nunca houvera), mas que alardeava ter combatido alguns invasores pagãos na época da Quartelada.

Alguns vizinhos mais velhos sabiam que não era bem assim, pois a Quartelada, um período em que  o Conselho dos Bem Nascidos, instituição máxima da região, fora substituído pelos Comandantes Carabineiros, acontecera num tempo mais antigo, quando Tosconaro pai era muito jovem. E sabiam, também, que ele fora convidado a se retirar do Carabinato por ter se envolvido em algumas quebras de hierarquia e insuflado motins contra as chefias. Mas, como estavam velhos e não queriam entrar em choque com gente perigosa, nada faziam para restabelecer a verdade histórica, permitindo e incentivando até que ele se tornasse um dos representantes da aldeia na CGA, Comissão Gestora Aldeã. A ideia, disse o sábio Efeagácius, o mais velho, era manter Tosconaro pai ocupado com as reclamações e brigas particulares dos aldeões, de modo que  não tivesse muito tempo para suas próprias reclamações e brigas.

Efeagácius já tinha sido presidente do CBN, Conselho dos Bem Nascidos, o poder central da região, e era bem versado nas mumunhas, patranhas e picaretagens tanto das Comissões Aldeãs quanto do próprio Conselho, sabendo que figuras estúpidas e egocêntricas como Zirouziro (como Tosconaro pai era chamado), eram relegadas aos gabinetes do subsolo, encarregados de receber e anotar as reivindicações dos mal nascidos, no caso das primeiras, tendo direito, na segunda, caso fosse para lá indicado, apenas de fazer alguns discursos nas reuniões quase desertas dos salões laterais, apresentar propostas que nunca se tornavam realidade, e, claro, concordar com o que determinavam as velhas raposas políticas, que só deixavam o poder quando morriam ou eram substituídas por filhos e parentes consanguíneos.

O conselho do ancião funcionou durante alguns anos, enquanto Zirouziro era apenas membro da Comissão Gestora de Ibirapitanga, um membro sem qualquer expressão, muito mais preocupado em cuidar dos seus. Como, aliás, eram todos os representantes instalados no subsolo. Zirouziro tinha, apenas, uma característica que o distinguia um pouco desta ralé representatória: como tinha sido carabineiro, começou a se arvorar em defensor intransigente da tropa armada, aquela massa de semi analfabetos recrutados nas fazendas e nas franjas da capital, a chamada bucha de canhão, caso houvesse uma guerra. Como não havia, ganhavam pouco e passavam o tempo fazendo exercícios, limpando bosta de cavalos, faxinando quartéis e como serviçais dos oficiais graduados, uma horta adequada para uma figura com a filosofia de vida de Zirouziro.

Ou seja, apesar de representar Ibirapitanga, ele nada fez de útil por ela e, percebendo que perderia a boca em sua aldeia, ousou voar mais alto: se propôs representar os carabineiros e todos aqueles que achavam que homem que é homem coça o saco em público, bate em mulher, amantes inclusas, mata bandido e sonega impostos, e foi indicado, por eles, para o Conselho dos Bem Nascidos. Instalou-se na capital da região com a 2ª mulher e mais um filho pequeno, mas manteve casa e filhos adolescentes na aldeia, de maneira que, aproveitando o poder adquirido pelo pai, eles pudessem estender seus domínios sobre ela e, dentro do possível, sobre outras aldeias próximas.

Não aconteceu exatamente como o desejado por ele: seus filhos tornaram-se adultos e, como poder político local, administraram e aumentaram consideravelmente o patrimônio familiar e, sempre se sustentando no apoio da rafameia carabineira, expandiram este poder político além da aldeia. Mas Zirouziro continuou sendo um representante no subsolo, que só se destacava quando aprontava algum escândalo, fosse apregoando sua misoginia, sua homofobia, seu racismo, fosse louvando a ditadura carabineira, fosse propondo transformar em herói nacional um dos mais violentos torturadores dos tempos da Quartelada.

Além de mumunhas, patranhas e picaretagens, a capital tinha encantos mil, principalmente verbas públicas – bem mais suculentas que nas aldeias – para sustentar tanto os representantes quanto seus protegidos e protegidas, argumentos mais do que suficientes para que eles tudo fizessem para por lá permanecerem indefinidamente. Para Zirouziro, até que foi fácil. Como o mundo estava evoluindo rapidamente, com os costumes rígidos da velha sociedade cristã ocidental sendo contestados por uns e outras, e a libertinagem se alastrando através das músicas, soirées culturais, espetáculos circenses e teatrais e até nos piqueniques familiares de fim de semana, ele se firmou como um padrão dos chamados homens de bem, que não viam estas mudanças comportamentais com bons olhos.

Para ele, que dizia em alto e bom som, em reuniões políticas e sociais ou em discursos e comícios, que bandido bom é bandido morto, que direitos humanos é para humanos direitos, que viadagem se cura com porrada, que mulher é pra cama e cozinha, que a família reconhecida na Bíblia (homem + mulher + filhos – mais amantes, eventualmente) é o bem mais precioso de um homem, começaram a acorrer, silenciosamente, centenas de aldeões que pensavam a mesma coisa (mas nunca o diziam em alto e bom som). Para eles, aqueles olhos azuis diziam verdades que só o novo Messias poderia dizer…

E, para completar e aumentar a crença, uma vertente de uma religião cristã ocidental, subdividida em várias denominações, propagava uma releitura da Bíblia, pela qual não era necessário morrer para se ganhar as delícias do Céu, pois estas delícias, com a graça de Deus e pelas mãos dos pastores, podia ser alcançada em vida mesmo, e que concordava com as posições misóginas, homofóbicas e bélicas de Zirouziro, bem como de sua postura crítica em relação à imposição legal (item I da Carta de Princípios dos Bem Nascidos) de separar a governança da religiosidade, também tornou-se parte de sua sustentação política.

Cresceram-lhe os olhos, pois. O grande líder popular do pais, Lulinássil, havia deixado a presidência do Conselho dos Bem Nascidos, tendo sido o primeiro mal nascido a ocupa-la. E saíra tão aplaudido que deixara uma mulher em seu lugar (um horror para muitos aldeões). Não foi uma boa escolha. Sem a mesma cintura política, muito rígida em seus princípios (havia participado das invasões pagãs na época da Quartelada), animou as velhas raposas políticas a retomarem o poder (que, na verdade, nunca deixaram de ter, apesar de terem que dividi-lo com mal nascidos). Com movimentos bem concatenados, bem financiados e bem divulgados, mobilizaram as chamadas forças urbanas e derrubaram a presidenta. O golpe seguinte era colocar seu representante no lugar dela. (continua da 4ª feira)

 

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