Coitadinhos…! (III)

Há outra história (ou lenda) familiar que mostra, com clareza, os predicados de macho esperto de meu avô, um homem que honrava sua posição de ‘coronel’ dono de terras e gentes, crítico contumaz do governo, mas dele dependente, cumpridor de suas obrigações católicas (ia às missas dominicais, fazia o sinal da cruz quando passava por uma igreja, mesmo que ela estivesse longe, e tinha, pelo menos, uma amante… para fazer aquelas coisas gostosas que não podia fazer com a sacrossanta esposa, mãe de seus filhos!)

Dizem os parentes que quando João Goulart tornou-se presidente do Brasil de fato (derrubando o parlamentarismo imposto pelos militares) e começou a anunciar as ‘tais’ reformas de base, que modificavam as arcaicas estruturas de poder nas áreas educacional, fiscal, política e agrária do país, meu avô, um prócer do velho PSD de JK tornou-se inimigo do governo, o que era e é um perigo… Grandes produtores rurais são sempre críticos do governo, qualquer governo, mas não inimigos, porque dependem do dinheiro dele para se manterem latifundiários (do mesmo modo, por mais progressista que seja um governo, tratar latifundiários como inimigos também é um perigo!)

Nas reuniões sociais ou com fazendeiros amigos ou nas entidades de classe, pregava abertamente um golpe que varresse as tentativas de castro-cubanização ou  comunização do país. E a coisa ficou mais drástica quando se anunciou que Jango ia assinar um decreto tornando área de domínio público 10 metros às margens das rodovias estaduais e federais.

A principal fazenda de meu avô ficava às margens da rodovia que liga Brazópolis a Paraisópolis (MG-295) e, quando o decreto foi anunciado, ele não teve dúvidas: armou todos os seu peões e, com ele próprio à frente da ‘tropa’, criou uma linha defensiva em todas as suas terras que, margeando a rodovia, poderiam ser ‘tomadas’ pelo governo comunista. Com esta e muitas outras medidas ‘comunizantes’ propostas, o governo Jango não resistiu e foi derrubado por um golpe civil-militar que, infelizmente, durou 21 anos.

O mais engraçado é que o primeiro ditador, Castelo Branco, anticomunista convicto, pouco depois de ser entronizado no poder, em defesa dos interesses do povo e do Estado, assinou o decreto que criou as faixas de domínio, áreas laterais às pistas que deviam pertencer ao Estado (patrimônio público)… E meu avô não contestou, não protestou e nem foi, de rifle em punho, defender suas terras, legitimamente herdadas de sogras e sogros… Aí, não era comunismo pagão… era para o bem da Pátria amada, salve, salve…!

Como se nota, não houve muitas mudanças na mentalidade brasileira nestes últimos 50 anos. Quer dizer… houve sim: o 1% tornou-se multibilionário, uns 19% permaneceram ou ficaram mais ricos e os demais 80% continuaram sendo brasileiros, ralando pouco ou muito para sustentar os primeiros, uma parte pisando nas outras partes para chegar aos 19%, outra parte buscando um salvador da Pátria que faça aquilo que ela não tem culhões para fazer e a maior parte vegetando com a dignidade possível.

Os donos da terra, como foi meu avô, evidentemente se inserem nos primeiros 20%… e, como tal, já reverteram as intenções do poderoso ministro da Economia, um contundente defensor do liberalismo econômico, forjado na Escola de Chicago. A máxima desta tchurma, desde os áureos tempos do guru Milton Friedman, é que não existe almoço grátis! Ou seja: o capitalismo não é um sistema econômico igualitário! É para ricos e espertos, que usam o poder herdado ou escalado para manter a massa passiva suando pelo pão nosso de cada dia e pagando os impostos que sustentam serviços públicos de péssima qualidade e rendimentos financeiros de alta rentabilidade e óbvio direcionamento.

Mas, os coitadinhos são eles, claro! Como aquele desembargador, ex-presidente do TJSP e ex secretário de Educação de São Paulo, que declarou, alto e bom som, que os penduricalhos remuneratórios dos juízes eram mais do que justos porque, por exemplo, eles precisavam se apresentar bem todo dia e tinham que comprar seus ternos em Miami.

Ou como os patriotas combatentes da corrupção brasileira, nossos bravos procuradores gerais, que estão se movimentando politicamente para receber uma compensação financeira pela perda do auxílio moradia que recebiam:  além do aumento de 16,38% nas suas remunerações (enquanto o salário mínimo teve aumento de 4,61%), eles estão batalhando por 60 dias de férias mais 16 de recesso mais o direito de trabalhar em casa 10 dias por mês mais o pagamento de gratificação por acúmulo de função.

Ou como alguns ilustres empresários de alto coturno, apoiadores de primeira hora do atual presidente da República, e eternos defensores de uma reforma radical da Previdência Social como a única solução para a situação de penúria econômica do país, e cujas empresas integram a lista de 100 maiores devedores do INSS, como a JBS, a Marfrig, a Teka Tecelagem, a Dedini S/A, o Bradesco, a Viplan, a SATA, a Itapemirim, a Lojas Americanas, A Editora Três (que publica a IstoÉ), o Banco RurL, etc etc etc…

Ou, ainda, como os ilustres deputados do afamado Centrão – que receberam significativos ‘agrados’ do Orçamento para aprovar o impeachment de Dilma e não aprovar os impeachments de Temer – e que vêm se reunindo com as lideranças políticas do novo governo, negociando uma substanciosa verba individual de R$10 milhões para olhar com os devidos carinho e espírito patriótico o projeto da Nova Previdência.

Coitadinho, enfim, é o impoluto presidente da Câmara, apelidado Botafogo pelos delatores da Odebrecht, que, em entrevista à Globo News, disse que a idade mínima de 65 anos para se aposentar é justa, vez que hoje “todo mundo consegue trabalhar até os 80 anos…”, algo que ele certamente não fará, pois como deputado federal reeleito por seis mandatos, já garantiu sua “mais que merecida” aposentadoria de R$23.165,76 por 24 anos por um estafante e estressante serviço parlamentar em benefício do país (e que pode chegar a R$33.763,00…).

Não é atoa que estes coitadinhos continuam dizendo que Deus é brasileiro… Seca no Nordeste, desmatamento amazônico, desabamento de morros cariocas, incêndio no Flamengo, violência urbana, feminicídios, Brumadinho não acontecem no Brasil deles.

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *